Há um tema esquecido no debate sobre o aborto: a vida

21 de abril, 2017

Após a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que firmou entendimento de que a prática da conduta nos três primeiros meses de gravidez não configuraria o crime de aborto (decisão no HC 124.306, sem efeitos vinculantes, em caso específico), decisão que segue a linha já iniciada quando do julgamento da ADPF 54 (fetos anencefálicos), abriu-se caminho para a futura manifestação da Suprema Corte a respeito do aborto em caso de gestantes infectadas pelo zika vírus (ADI 5.581), além de dar início a intenso debate social e conflitos no Poder Legislativo.

(O Estado de S. Paulo, 21/04/2017 – Acesse o site de origem)

Nesse contexto, o PSOL protocolou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no Supremo para pedir que o aborto feito nas 12 primeiras semanas de gestação não seja considerado crime em qualquer caso, ação essa distribuída para a Ministra Rosa Weber que, diante do tema delicado, solicitou pareceres de diversos órgãos governamentais – estes, então, posicionaram-se no sentido de que não apenas o assunto deve ser tratado apenas pelo Legislativo, como as normas atuais não necessitam de mudanças.

O ponto fulcral nas manifestações contra o aborto no primeiro trimestre é a necessidade de proteção da vida do embrião e do feto, vida essa que não poderia ser considerada como “inferior” à da gestante.

Leia também: Rodrigo Maia envia ao STF parecer contrário à descriminalização do aborto (G1, 24/04/2017)

Pois bem. Em que pesem os apaixonados argumentos, alguns muitas vezes carregados de tintas religiosas, não se viu qualquer debate sério acerca do ponto fundamental de toda a questão: quando começa a vida? E a partir de que ponto essa vida possui o status de pessoa, constitucionalmente protegida?

A resposta não é fácil. Contudo, o próprio STF já nos deu um posicionamento que pode servir de ponto inicial da questão, quando do histórico julgamento da ADI 3.510, que tratou da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias.

Nesse julgamento, decidiu-se que as pesquisas não violam o direito à vida ou a dignidade da pessoa humana, sendo um dos argumentos acolhidos o de que o zigoto, do qual se retiram as células tronco, representa uma realidade distinta da pessoa natural, posto que ainda não tem o cérebro formado.

Mais do que isso, tem-se que nosso Código Civil entende como pessoa – com todos os direitos que o ordenamento pátrio prevê -, aquele nascido com vida, ou seja, torna-se pessoa apenas após o nascimento com vida. Inobstante, protege-se os direitos do nascituro desde sua concepção – há uma expectativa de direitos.

Se esta parte final parece colocar por terra qualquer embate, assim não nos parece. Isso porque, embora se protejam os direitos, tem-se expressa definição legal de que o nascituro não é considerado pessoa natural – o que a mãe, esta sim, é -, de modo que seus direitos assegurados, em realidade, encontram-se numa clara relação de subordinação aos da gestante. Assim, a compatibilização desta proteção ao nascituro deve, necessariamente, dar-se de acordo com os interesses da mulher grávida.

Claro que não se defende, dessa forma, a possibilidade de aborto a qualquer tempo. O termo fixado como o primeiro trimestre é limiar seguro, e que pode ser harmonizado com a legislação já existente no tocante à definição de vida.

Isso porque, se a Lei de Transplantes, amplamente recepcionada em nosso ordenamento, define como momento de constatação do óbito a morte encefálica do indivíduo, tem-se que, a contrario sensu, a vida inicia-se a partir do momento no qual o feto possui a “vida” encefálica, ou seja, que seu cérebro encontra-se formado e emitindo ondas cerebrais, posicionamento que também se coaduna com aquele adotado pelo STF quando da ADI 3.510.

Deve-se ter em mente que, a despeito da desinformação que cerca a questão e da forte carga emocional, o tronco cerebral do feto não se desenvolve completamente até o final do segundo trimestre, ou seja, muito depois da data limite de 12 semanas, enquanto o cerebelo e o córtex cerebral ainda dependem de um longo desenvolvimento, só amadurecendo durante o terceiro trimestre, e estando completo – com as noções de pensamento e sensações – próximo ao termo final da gestação¹.

Em outras palavras, até o marco das 12 semanas, não há atividade cerebral de qualquer ordem, há meramente um desenvolvimento ainda muito rudimentar do que poderá vir a ser o sistema nervoso do feto, não sendo possível compreender tal estágio como vida, seja sob a luz das normas já existentes em nosso ordenamento, seja sob o viés científico.

Pelo exposto, temos que um dos pontos fundamentais do debate – a própria definição de vida – está sendo negligenciado em favor de argumentos alarmistas e arroubos emocionais, deixando de lado a necessária cientificidade que deve reger tal debate, posto que não se pode permitir que a autonomia da mulher e a sua dignidade de pessoa humana plenamente formada e capaz, possam tomar posição secundária frente ao feto que, sob todos os vieses, não é pessoa e não possui vida nem qualquer autonomia.

¹A respeito da formação cerebral do feto, cf.: LINDERKAMP, Otwin. Et. al. Time Table of Normal Foetal Brain Development. Int. J. Prenatal and Perinatal Psychology and Medicine, Vol. 21, No. 1/2, 2009. p. 4-16. Disponível em:  http://www.mattes.de/buecher/praenatale_psychologie/PP_PDF/PP_21_1-2_Linderkamp1.pdf. Acessado em: 13.4.2017. De se notar, ainda, que ao final do primeiro trimestre o feto, se bem desenvolvido, terá aproximadamente apenas 5 centímetros, muito diferente da imagem de um indefeso bebê que povoa o imaginário.

*Ana Paula Souza Cury, advogada especializada em Direito Médico e sócia do Souza Cury Advocacia

*Maria Luiza Gorga, advogada Criminal e sócia do Fernando Fernandes Advogados

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