ONGs estrangeiras orientam brasileiras sobre aborto

29 de outubro, 2014

(Brasil Post, 29/10/2014) Mulheres brasileiras abortam. Eis aí um fato irrefutável, independentemente de ponto de vista. Mais que isso… Mulheres brasileiras morrem por causa de abortos inseguros.

Estima-se que aconteçam mais de 1 milhão de abortos no país por ano.

“Calcula-se que, dia sim, dia não, uma mulher morra por causa de abortamento mal-sucedido”, me contou Jefferson Drezett, que há 20 anos coordena o Serviço de Atenção Integral a Mulheres em Situação de Violência Sexual em São Paulo.

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Quando entrei em contato com o Ministério da Saúde fui orientada a procurar o Ministério da Justiça. Segundo o ministério, tratava-se de uma questão criminal, e não de saúde pública.

Talvez seja por isso que tantas brasileiras decididas a interromper uma gravidez preferem confiar a vida a um anônimo de outro continente, na surdina, a procurarem ajuda no país onde vivem.

“Pior do mundo”

Hoje, diversas ONGs de médicos estrangeiros orientam, via internet, brasileiras decididas a abortar sobre como fazer o procedimento de forma segura pela via medicamentosa.

A holandesa Women on Web é a maior dessas organizações. Por mês, duas mil mulheres entram em contato com a equipe de cerca de 30 pessoas, entre médicos, enfermeiros e psicólogos, que atendem a mais de cem países em nove idiomas diferentes.

No site da entidade, as mulheres brasileiras dividem suas experiências.

“Ao sair da cama, percebi que a camisinha estava do outro lado. Não conseguia parar de me achar a pessoa mais idiota do universo” – Maria Clara, 23 anos

“Estava desesperada buscando vendedores clandestinos de Cytotec na internet quando encontrei o Women on Web. Eles me ampararam no sentido mais solidário, humano e maternal, por mais contraditório que isso possa parecer” – Sofia, 24 anos

Além de informar mulheres sobre a posologia e os efeitos do remédio, a Women on Web providencia, mediante uma doação de 90 euros, o envio de pílulas de misoprostol — o famigerado Cytotec — para países onde a ele é proibido ou de difícil acesso.

É o caso do Brasil. Hoje, o único remédio cujo princípio ativo é o misoprostol registrado no país é o Prostokos. “O produto é indicado para os casos de necessidade de interrupção da gravidez, mas seu uso é restrito ao ambiente hospitalar, não podendo ser vendido em farmácias”, afirma a Anvisa em comunicado enviado ao Brasil Post.

Conversei via Skype com a médica holandesa Rebecca Gomperts, fundadora da Women on Web, que relatou sua experiência com nosso país.

“De todas as sociedades em que, supostamente, as mulheres têm direitos, o Brasil é a pior do mundo para quem precisa abortar. Muito pior que os países africanos. Nós não podemos ajudar. Isso é deprimente.”

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Rebecca Gomperts, médica holandesa à frente das ONGs Women on Waves e Women on Web (Foto: Reprodução)

Desde o início da Copa do Mundo, a Women on Web não envia mais remédio para o Brasil. “O risco de o medicamento não chegar, devido à fiscalização alfandegária, é tão alto que, assim, você coloca as mulheres em risco”, afirmou.

“A lei é eficaz para matar mulheres”

O efeito colateral da proibição da venda do misoprostol é o florescimento de um mercado clandestino.

“É o mesmo mercado que está envolvido com drogas, armas. Não há nenhum controle sanitário sobre isso. É claro que isso se torna um procedimento inseguro”, comenta Jefferson Drezett.

Nem a Anvisa nem a Polícia Federal souberam informar quanto misoprostol é contrabandeado ou desviado de hospitais por ano.

Há três situações em que não é ilegal interromper uma gestação: quando não há outro meio de salvar a vida da mãe, quando a gravidez resulta de estupro e nos casos de anencefalia fetal.

O artigo 124 do Código Penal – que data de 1940 – prevê prisão de um a três anos para quem faz o autoaborto ou consente em ser submetida a um procedimento abortivo. Mas são raras as mulheres que chegam a júri popular.

“Da mesma forma que todos os policiais sabem onde estão os prostíbulos, eles sabem onde estão as clínicas de aborto. A prática é tão indiscriminada que já está aceita – é uma cifra negra muito grande”, explica Juliana Belloque, defensora pública do Estado de São Paulo e membro do Comitê Latino-Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos da Mulher.

“Mas mulheres pobres não têm acesso a isso. Elas, sabendo que é criminoso, e sem condições financeiras, provocam o aborto em si mesmas da forma mais absurda possível”, explica.

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Juliana Belloque, defensora pública (Foto: Reprodução)

As consequências da lei acabam sendo muito mais severas do que a própria pena criminal.

“A lei é completamente ineficaz para evitar o abortamento, mas é altamente eficaz para matar mulheres”, atesta Jefferson Drezett.

Procurado, o Ministério da Justiça disse que não se tratava de um assunto relativo à pasta.

“Inevitável”

De um modo geral, quem vai a julgamento são pobres que têm sangramentos após um procedimento inseguro e vão para o hospital, explica a defensora.

Ali, são denunciadas por médicos e enfermeiros que quebram o sigilo profissional previsto por lei e chamam a polícia.

“A mulher com medo de ir ao hospital é uma mulher em uma situação de risco imensa. Ela precisa ser tratada, mas não procura o médico por medo. Em termos de interesse público é um contrassenso”, diz.

“Clandestino”

“As mulheres que morrem são as que não fazem diferença para o governo. São jovens, pretas, pobres e se chamam Maria. Quem está morrendo não são nossas esposas e nossas filhas, porque essas estão tendo acesso ao aborto clandestino, mas seguro”, disse Jefferson.

As atividades do Women on Web são extremamente controversas.

Na lei brasileira, autoaborto é crime contra a vida, e a venda e a importação de misoprostol são crimes hediondos. O Conselho Federal de Medicina (CFM) não reconhece consultas de médicos estrangeiros, via internet, para habitantes brasileiros.

“Este médico deveria ser submetido ao Revalida, como os demais médicos estrangeiros que atuam no Brasil”, defende Gerson Zaffalon, secretário do CFM.

Mas, segundo Jefferson Drezett, esses profissionais salvam vidas. “Ter alguém que está comprometido em ajudar – e é evidente que, sendo médicos, eles têm essas condições – pode evitar a morte de muitas e muitas mulheres.”, disse.

“Se recorrer ao aborto para essas mulheres é inevitável, se elas têm uma história pessoal que torna impossível essa gestação, pelo menos que elas não morram.”

“Escolha segura”

De acordo com Drezett, o misoprostol é a forma mais segura de realizar um aborto.

“Hoje, nos EUA, a cada 100 mil abortos naturais, morre uma mulher. Se você utilizar o misoprostol em mulheres com gravidez abaixo de 12 semanas, o risco de morte gira em torno de 0,1 para cada 100 mil, ou seja, é 10 vezes menor”.

Segundo o médico, nas duas décadas em que coordena os abortos legais do Hospital Pérola Byington, nunca houve nenhuma morte e nenhuma complicação.

Isso porque o remédio é utilizado sob supervisão médica, nas doses adequadas. “Por isso esse processo para orientação [da Women on Web] é tão importante”, diz Jefferson.

“Essas informações técnicas não são informações ilegais. Se essa mulher for à internet, pode consultar as normas técnicas do Ministério da Saúde e o protocolo da prefeitura”.

“Então, por que um médico não pode conversar com ela ajudando essa mulher a fazer uma escolha segura?”, questiona.

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