Por que o Pacto de San José da Costa Rica não inviabiliza a descriminalização do aborto

03 de julho, 2018

“Criminalização do aborto é mantida não para proteger a vida do feto, mas como controle da sexualidade feminina”, afirma o juiz José Henrique Torres.

(HuffPost Brasil, 03/07/2018 – acesse no site de origem)

“Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.” É o que diz o artigo 4º do Pacto de São José da Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos, argumento citado sistematicamente nos debates sobre a descriminalização do aborto.

Apesar da expressão “desde a concepção”, que poderia ser entendida como uma barreira para o abortamento legal, uma interpretação contextualizada do tratado, defendida por especialistas, vai na direção oposta. “A descriminalização do aborto não é apenas possível, mas uma exigência do sistema de direito humanos e uma exigência constitucional também porque afeta o direito da mulher à saúde”, afirmou ao HuffPost Brasil José Henrique Torres, juiz titular da 1ª Vara do Júri de Campinas (SP) e professor de Direito Penal da PUC (Pontifícia Universidade Católica) na mesma cidade.

O mesmo entendimento é defendido pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat. Em artigo publicado no Jota durante a tramitação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 181/2015, que inviabiliza o aborto legal no Brasil, a jurista destacou julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o tema, ao analisar um caso de reprodução in vitro de El Salvador em 2012.

No julgamento que interpretou o artigo 4º, a Corte, criada pelo próprio Pacto de São José, entendeu que o tratado não permite que o embrião seja considerado como pessoa. Já a expressão “em geral” seria incompatível com a proteção do direito a vida de maneira absoluta absoluta. Também foi entendido que “o objeto direto de proteção [do artigo do pacto] é fundamentalmente a mulher grávida”.

A Corte Europeia de Direitos Humanos também já considerou legítima a descriminalização do aborto, o que permitiu a legalização em países como Itália, França e Portugal. “É uma questão que já está decidida, tanto no sistema de direitos humano global, quanto no regional latinoamericano”, afirma o juiz e professor de Direito Penal.

O texto da Convenção Americana de Direitos Humanos foi debatido na Conferência Internacional dos Estados Americanos, realizada em 1948, em Bogotá, na Colômbia. A versão final foi decidida a fim de contemplar as legislações nacionais dos países signatários, que admitiam basicamente 5 tipos de abortamento legal: para salvar a vida da mãe, na gravidez decorrente de estupro, para proteger a honra da mulher, para prevenir a transmissão de doença hereditária ou contagiosa e por razões econômicas.

Assinado em 22 de novembro de 1969, na cidade de San José, na Costa Rica, o Pacto foi ratificado pelo Brasil em setembro de 1992. O tratado composto por 81 artigos e é baseado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada em 1948 e um marco na construção do sistema internacional de direitos humanos no pós-guerra.

É dentro desse conjunto de normas e decisões judiciais que o direito ao aborto deve ser discutido, no entendimento de juristas. “Olham para o Pacto de maneira isolada. Existem inúmeros tratados e manifestações dos órgãos do sistema de controle de direitos humanos, do sistema de monitoramento, do sistema de julgamento que têm afirmado inúmeras e reiteradas vezes que deve ser descriminalizado o abortamento”, afirmou José Henrique Torres.

É o caso, por exemplo, da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, do Cairo, de 1994. O plano de ação produzido no encontro prevê, no princípio 4, a promoção da equidade de sexos e a garantia de que a mulher controle a própria fecundidade. Os direitos humanos da mulher, das meninas e jovens fazem parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais”, diz o documento.

No ano seguinte, a Plataforma de Ação de Pequim, por sua vez, reconheceu a necessidade de mudar o foco da mulher para o conceito de gênero e afirmou os direitos das mulheres como direitos humanos. “O aborto inseguro põe em risco a vida de um grande número de mulheres e representa um grave problema de saúde pública, porquanto são as mulheres mais pobres e jovens as que correm os maiores riscos”, diz o tratado.

“A criminalização do aborto é mantida não para proteger a vida do feto, mas como instrumento de controle da sexualidade feminina, por uma questão ideológica machista, de androcentrismo, de misoginia”, afirma juiz José Henrique Torres. (Foto: Nurphoto/Getty Images)

De acordo com esse sistema internacional, a interrupção da gravidez deve ser tratada como um problema de saúde pública e não no âmbito criminal, como é no Brasil. “Ainda que se pense na questão da vida, ela tem de ser feita fora o sistema penal porque a criminalização afastas as mulheres e inviabiliza a assistência e com isso as mulheres estão morrendo aos milhares, pelo mundo todo, pela prática do aborto inseguro e ele é inseguro porque é feito na clandestinidade e ele é feito na clandestinidade porque é criminalizado”, destaca o especialista em direito penal.

Mais de 25 milhões de abortos inseguros, o equivalente a 45% dos procedimentos realizados, ocorreram anualmente entre 2010 e 2014, de acordo com estudo da OMS (Organização Mundial da Saúde) e do Instituto Guttmacher publicado em 2017.

Quem pode abortar no Brasil hoje

Hoje, o Código Penal Brasileiro, em vigor desde 1940, prevê 3 tipos de criminalização do aborto. Quando é provocado pela própria gestante, é punido com 1 a 3 anos de prisão. A pena varia de 3 a 10 anos para quem interromper a gravidez alheia sem consentimento e de 1 a 4 anos quando o crime ocorre com consentimento da mulher. Há ainda agravantes, como a gestante ser menor de 14 anos.

O Código permite a interrupção da gravidez quando ela é resultado de estupro ou em caso de risco da mulher. O aborto também é permitido quando o feto é anencéfalo, conforme decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de 2012.

Outra possibilidade de descriminalização está em debate. Está em tramitação no tribunal a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 442, que pede a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação. As audiências públicas sobre o tema serão realizadas em 3 e 6 de agosto, por determinação da relatora, ministra Rosa Weber.

A legislação brasileira não determina quando começa a vida. O artigo 5º da Constituição prevê que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, mas não faz referência à concepção.

Já o Código Civil, no artigo 2º, estabelece que “a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. A norma é frequentemente usada para resolução de disputas patrimoniais.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, por sua vez, tem caráter supralegal, isto é, tem um peso jurídico maior do que a legislação ordinária brasileira, que está fora do texto constitucional. Por esses motivos, na interpretação de José Henrique Torres, o aborto não é legalizado no Brasil por motivações políticas.

A criminalização do aborto é mantida não para proteger a vida do feto, mas como instrumento de controle da sexualidade feminina, por uma questão ideológica machista, de androcentrismo, de misoginia.
José Henrique Torres

O professor cita ainda princípios constitucionais que sustentam a legalização. “Você tem o princípio constitucional da idoneidade, que existe que a criminalização de uma conduta seja útil, seja eficaz. Isso não acontece no Brasil. Um outro princípio exige que a criminalização não pode gerar mais danos do que o próprio problema que se quer enfrentar e as consequências danosas do abortamento, como morte de mulheres e sequelas, são muito maiores do que ele próprio (…) também só se pode criminalizar uma conduta, se não houver outra alternativa, com base no princípio da intervenção mínima”, afirmou Torres.

Marcella Fernandes

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