Rebeca, o bode expiatório dos novos fariseus, por Gisele Pereira

06 de dezembro, 2017

Entre aqueles que atacam o seu pedido ao STF para realizar um aborto, quem de fato está preocupado com a sua saúde ou com o futuro do bebê?

(CartaCapital, 06/12/2017 – acesse no site de origem)

Os textos bíblicos do Novo Testamento estão repletos de críticas de Jesus aos fariseus. Eles eram um grupo extremamente apegados às tradições e leis, separado dos demais judeus, com grande influência na corte política e religiosa da Palestina, além de grande poder sobre a população. Acreditavam possuir o verdadeiro conhecimento e a mais mais pura prática religiosa e gostavam de ser reverenciados por isso.

As palavras atribuídas a Jesus são duras ao denunciar a arrogância e a hipocrisia dos fariseus. Acostumados a lavar as mãos até os cotovelos para se purificar antes das refeições e orar em pé nos templos para que todos os vissem a rezar, esqueciam-se do principal, praticar a  justiça, o amor e a misericórdia.

Em uma passagem do evangelho de Mateus onde encontramos a maior quantidade de críticas aos fariseus, Jesus apregoa: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia.
Assim também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas interiormente estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade.”

Per causa das críticas de Jesus, fariseu se tornou sinônimo de hipócrita no mundo cristão.  E não é difícil encontrar hoje quem assuma a postura de fariseu, reivindicando as próprias leis e tradições calcadas em princípios religiosos, manipulando a opinião pública para seus interesses privados e completamente distante da noção de amor ao próximo, misericórdia e justiça.

O caso de Rebeca Mendes e a tramitação da PEC 181 são exemplares da impregnação farisaica na vida pública brasileira.

“Antes de me julgar, peço que me escute”, escreve Rebeca em uma carta direcionada à ministra Rosa Weber, na qual faz um apelo à Suprema Corte brasileira para que possa interromper sua gestação ainda embrionária de maneira segura e sem ser criminalizada.

Narra o abismo que se tornou sua vida a partir do momento em que descobriu a gravidez. Tomada de angústia, não pode comer, dormir ou fazer qualquer outra atividade cotidiana de maneira tranquila.

Rebeca tem pleno conhecimento e compromisso com a maternidade. Por seus dois filhos não quis se submeter a um procedimento que poderia colocar sua vida e/ou sua liberdade em risco. É justamente por esse compromisso, pelo amor a seus filhos e a preocupação com suas vidas, que tem a clareza de que não pode dar prosseguimento a essa gestação e trazer mais um bebê ao mundo neste momento.

Com o desemprego certo a se aproximar, por possuir um trabalho temporário até fevereiro e não consegui outro na condição de gestante, teme pela própria subsistência e a de seus filhos. Se der prosseguimento à gestação, terá ainda a preocupação com o cuidado e a subsistência de um bebê, na condição de desemprego e desespero. Obrigada a trancar o curso de direito e perder a bolsa do Prouni, verá a possibilidade de melhorar sua condição e de sua família se esvaecer.

Mas Rebeca não foi ouvida.

Contou sua história, expôs sua vida e a de sua família, não em favor exclusivo de si mesma, mas de todas as mulheres que enfrentam situação semelhante, para que tenham o direito de julgar a partir de suas consciências e condições objetivas a continuidade ou não de uma gestação.

Quem a condena jurídica e moralmente a seguir adiante com essa gestação se pergunta sobre a vida e as necessidades de Thomas, de 9 anos, e Felipe, de 6 anos, os filhos que Rebeca já tem? Estarão interessados no desenvolvimento deste terceiro filho após seu nascimento? Em todos os recursos materiais e emocionais necessários a sua sobrevivência? Preocupam-se com a vida e a saúde emocional de Rebeca na condição de mãe de três filhos, um deles recém-nascido, desempregada e com estudos incompletos? Quiseram saber se a pensão irrisória do ex-marido seria suficiente para alimentar uma família de quatro indivíduos, e todas as necessidades especiais que um bebê requer?

Rebeca foi julgada.

A petição para que seu caso fosse considerado para a concessão de liminar, solicitada em 7 de março de 2017, foi negada. Rebeca se diz desamparada pela justiça ao tomar conhecimento da decisão. Mas o pior julgamento ela tem sofrido da opinião pública mobilizada por apelos farisaicos de pretensa defesa da vida. Transformada em bode expiatório da empreitada fundamentalista que segue sua marcha no assalto aos direitos das mulheres.

Os comentários nas redes sociais e nas páginas de periódicos digitais acusavam Rebeca de irresponsável, julgavam sua vida afetiva e a culpavam por não fazer uso de método contraceptivo, sem colocar o mesmo peso da responsabilidade no homem. Por que a sociedade cobra apenas as mulheres prevenirem a gravidez, isentando os homens dessa responsabilidade?

Mas e se Rebeca fosse sua amiga? E se fosse alguém conhecida dos tomadores de decisão de nosso País, de juízes ou mesmo de religiosos contrários ao aborto por uma moral religiosa, sua situação seria bem diferente. A pesquisa realizada por Locomotiva/ Patrícia Galvão demonstra isso. Dos 50% de entrevistados que se declararam a favor da prisão de mulheres que tivessem praticado aborto, apenas 7% chamariam a polícia se conhecessem a mulher.

Como diz a canção Ventre Livre de Fato: “Hipocrisia, pra desconhecida é punição. Mas se for da família é só tratar com discrição”.

Em pesquisa anterior encomendada pelas Católicas ao IBOPE Inteligência e realizada em fevereiro deste ano, onde foram entrevistadas 2002 brasileiros com 16 anos ou mais, a porcentagem de favoráveis a prisão era menor. Apenas 36% concordaram que uma mulher que recorre ao aborto deve ser presa. Isso mostra o cenário de disputa permanente pelos direitos das mulheres no âmbito da opinião pública e aponta para a necessidade de ampliar o debate e o conhecimento a respeito deste assunto que está longe de ser encerrado.

Notadamente, o moralismo e o estigma que envolve a questão é facilmente dissipado quando se trata de uma conhecida. O julgamento dá lugar a empatia. É esta a percepção que precisamos exercitar para além do nosso círculo de conhecidas, descortinando a encenação farisaica e seu ataque às vidas e escolhas das mulheres.

Como católicas, acolhemos a angústia de Rebeca e de todas as mulheres nesta situação. Nos colocamos ao seu lado nesta luta por sua vida, por seus sonhos e suas escolhas.

Gisele Pereira, historiadora e cientista da religião, professora do Ensino Básico; integrante da equipe de coordenação de Católicas pelo Direito de Decidir.

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