Vítimas de violência sexual evitam recorrer a aborto legal, aponta estudo da Unicamp

15 de junho, 2015

(Unicamp, 15/06/2015) Pesquisa da FCM desenvolvida por psicóloga aborda vivências de mulheres que solicitaram interrupção da gestação

Estudo de doutorado desenvolvido na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) aponta que a vítima de violência sexual, ao engravidar, mesmo podendo recorrer ao aborto legal, acaba optando pelo aborto inseguro. Não assume que a criança foi fruto dessa violência. “Passa a viver solitariamente essa situação e a sua complicação, que é a gravidez. Em geral, a vítima não sai incólume. Sente medo e angústia do que poderá sobrevir, e o pior é que terá que conviver com a dor moral da violência pelo resto de sua vida, mesmo achando forças para retirar a criança”, conclui Carolina Machado de Godoy, autora da pesquisa.

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Segundo a psicóloga, as estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o aborto na América Latina são contundentes: 19 milhões de abortamentos inseguros por ano (39 abortos inseguros por mil mulheres). Em média, está previsto que 15% das gestações terminarão em aborto espontâneo. Metade das gestações que evoluem são indesejadas e uma parte delas acaba em aborto clandestino.

Para fundamentar o seu trabalho, a autora foi justamente buscar o caminho inverso: ela abordou no seu trabalho as vivências das mulheres que sofreram violência sexual, engravidaram e, a seguir, solicitaram interrupção legal da gestação no Ambulatório de Atendimento Especial às Mulheres Vítimas de Violência no Hospital da Mulher “Prof. Dr. José A. Pinotti” – Caism.

Carolina elucida a problemática do sofrimento dessas mulheres, sinalizando quão inaceitável é essa atitude e como ela fere os seus direitos. Mais um agravante: seu trabalho sugeriu que, quando a violência acontece, essas mulheres deixam de procurar os serviços de atenção à sua saúde. Na verdade, elas querem muito esquecer tudo.

Elas deveriam procurar logo um serviço médico, adverte a psicóloga. Como isso não ocorre, vão se dar conta depois de que ficaram grávidas.

Desde 1940, o Código Penal brasileiro prevê o aborto em casos de estupro. “O aborto não é penalizado quando representa risco à mãe e, desde 2012, nem quando o feto é anencefálico”, afirma a professora da área de Ginecologia da FCM Arlete Fernandes, orientadora da tese.

Arlete conta que Carolina voltou seu olhar para essas vítimas da violência. Foi deste modo que se propôs a estudar, em longo prazo, as suas vivências, experiências e emoções por causa da interrupção da gestação. Ela entrevistou dez mulheres que procuraram o Caism entre 2006 e 2011. Seu público-alvo eram mulheres entre 18 e 38 anos, de diferentes classes socioeconômicas, a maioria com filhos. Três tinham curso superior completo e as demais tinham mais de oito anos de escolaridade. Uma delas era empresária. A maior parte estava estudando na época da violência.

Essas mulheres, na maior parte, tinham sido vitimizadas por violência urbana, por desconhecidos, na rua. Metade da amostra era solteira e a outra metade divorciada ou vivia em união estável.

Carolina Machado de Godoy, autora da tese: “A amostra foi reduzida para conhecer as experiências em profundidade”

VIVÊNCIAS

Um achado do estudo foi que essas mulheres não procuraram um serviço de emergência nas primeiras horas, e não pela violência, mas pela descoberta da gravidez. Se tivessem vindo antes, a gravidez teria sido evitada com o uso da pílula de emergência, constata a doutoranda.

Uma questão que se interpõe no conhecimento sobre o assunto é que ainda não se sabe o que de fato elas vivenciam durante e após a interrupção, e o que isso traz de repercussão à sua qualidade de vida.

Ter optado por um estudo qualitativo permitiu conhecer a vivência das mulheres, desde receber a notícia da gravidez, a trajetória até o Caism e a interrupção da gestação. “Avaliamos mulheres pelo menos um ano após esse procedimento ou até cinco anos após”, ressalta. “A amostra foi reduzida para conhecer as experiências em profundidade.”

As vítimas, via de regra, chegam ao Caism em sigilo absoluto, explana a pesquisadora. “Por isso meu estudo reforça a decisão da mulher de ‘ter’ que esquecer o que houve com ela.”

A experiência da interrupção pode lhes trazer certo alívio. Mas, à medida que é elaborada, as mulheres sentem culpa, sobretudo pela proibição do aborto no contexto moral e religioso. Sentem que não deram uma chance para aquela criança.

Arlete salienta ainda que elas não se arrependem do aborto, todavia trazem essas questões no seu íntimo. No Caism, elas são atendidas por psicólogas e psiquiatras durante o período de internação, e o serviço é disponibilizado por seis meses após o procedimento.

No estudo, disseram que foram ajudadas, que a sua carga diminuiu e demonstraram satisfação com o serviço. De outra via, não retornaram porque queriam esquecer aquele constrangimento. Retornar implicaria relembrar a angústia. “Por isso é necessário criar serviços para reencaminhar essas mulheres, fazer acompanhamento de saúde mental e trabalhar com a mídia veiculando que essa é uma problemática dolorida”, sublinha a ginecologista.

A seu ver, é importante divulgar mais constantemente os serviços de atenção à saúde da mulher, pois são primordiais para essas pessoas. As vítimas não procuram o serviço por vergonha ou por desconhecerem a lei do aborto. Na verdade, elas precisam de apoio para se readaptarem à realidade.

“É preciso reforçar o valor do perdão, que está no âmago da religião, e se livrar do preconceito. O estupro é uma marca na vida de quem foi violentada e cuja decisão foi a melhor na época, visto que não conseguiriam lidar com a gravidez de um pai desconhecido. Como iriam justificar isso para um filho, para um marido e para a sociedade?”, questiona Arlete.

Fora a justificação da paternidade, há outros dois motivos para a solicitação do aborto: o medo de ter o filho e de não conseguir amá-lo; e dele ser a lembrança viva daquela violência.

A docente reforça que a mulher não pediu para ser agredida sexualmente “e, incrivelmente, se sente culpada, dizendo que não deveria estar na frente do portão da casa, no ônibus, com uma blusa decotada, em um lugar ermo. Não é nada disso. Chega. Ela é uma vítima”.

PIONEIRISMO

Em 1994, mesmo sendo um direito previsto por lei, as mulheres não tinham um serviço do SUS para serem acolhidas e cuidadas. A princípio, elas procuravam o Caism espontaneamente a fim de buscarem cuidados, visto que ele era o Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher. “Raciocinando assim, elas tentavam resolver uma situação de direito, mas que ninguém tinha se disposto a acolhê-las”, observa a ginecologista.

Ela relata que as mulheres grávidas, após a violência sexual, eram encaminhadas ao serviço, na época sob a coordenação do obstetra Aníbal Faúndes, que tinha ideias de vanguarda – de oferecer atendimento integral e especializado à mulher em suas necessidades reprodutivas.

Acontece que, para essas mulheres, era tão improvável ingressar em um serviço de referência que chegavam ao Caism muito além das 20 semanas de gestação, quando o aborto já não era mais permitido e havia riscos.

Faúndes e sua equipe – enfermeiras, psicólogas e assistentes sociais –, sensibilizados com a problemática, idealizaram um serviço de emergência para atender as mulheres logo após a violência sexual e administrar a pílula de emergência, que impede a gravidez.

Das vítimas que procuraram o Caism até aqui, houve só uma gravidez entre as mulheres que usaram a anticoncepção de emergência e mais de 1.500 já foram atendidas pelo Serviço de Emergência. De 1994 até hoje, foram 200 solicitações de interrupção legal da gestação.

Arlete, porém, explica que nem todas as solicitações são atendidas. Por volta de 60% são realizadas; outras 40% são negadas porque estão em idade gestacional superior à estipulada, não preenchem os critérios da lei ou, ainda, porque desistiram ou porque perderam seguimento.

Hoje, se as mulheres chegam ao Caism até 72 horas após a violência sexual, recebem anticoncepção de emergência – uma pílula de 1,5 mg de levonorgestrel (progesterona), a antiga ‘pílula do dia seguinte’.

Arlete comenta que essa pílula, quanto mais cedo for ingerida, maior será sua efetividade. “Não se trata de uma pílula abortiva. Ela inibe o óvulo de sair do ovário, por isso deve ser tomada logo após a violência.”

A professora Arlete Fernandes, orientadora do estudo: “É necessário criar serviços para reencaminhar essas mulheres”

IMPLICAÇÕES

Arlete expõe que este estudo é sobremodo relevante nesse momento em que saiu um decreto da Presidência da República, de agosto de 2014, que exige que todos os serviços do SUS, que funcionam 24 horas, têm o dever de atender violência sexual – tanto na emergência quanto na interrupção da gestação. “Como são serviços difíceis de serem implantados, é preciso ter estudos de maior abrangência para aumentar o conhecimento sobre a problemática da violência sexual e de seus agravos.”

Essa é somente uma complicação, enfatiza Carolina. Existem outras. Cerca de 20% das mulheres continuam, após seis meses da violência sexual, com necessidade de tratamento para quatro complicações: depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e ideação suicida, diagnosticadas através de escalas de saúde mental.

A psicóloga assinala ainda que as mulheres, após a violência sexual, tendem a se prostituir mais, a terem condutas não cuidadosas consigo mesmas, a fumarem, a beberem e a usarem drogas. Perdem o emprego e não se ajustam mais à sociedade. “A violência sexual é uma agressão que afeta o ego das mulheres”, revela. “Não interfere só no físico. É um estigma na vida, e a gravidez é o agravo.”

Se não houvesse a gravidez, as vítimas acreditam que ninguém saberia do estupro. “Mas, com a gravidez, a violência é revivida pela segunda vez. Se fosse possível apagar algo nesse sofrimento, apagaria a violência”, opina a orientadora.

Para Carolina, a maior violência é ver essas mulheres sendo desrespeitadas, como se isso fosse legalizado. O resultado é que, quando ocorre uma violência sexual, as mulheres não dizem, subnotificam, não procuram ajuda.

A psicóloga realça a necessidade de olhar para essas mulheres como pessoas que estão em grande sofrimento, pois de fato estão. “Assim, se existe uma prerrogativa social de que a mulher que faz um aborto é uma mulher sem emoção, que não está pensando na criança, pelos achados que tivemos, isso não faz sentido algum.”

O Caism é o único serviço da região de Campinas que fornece esse tipo de assistência. O Ministério da Saúde está tentando implantar esse serviço em outros locais e trazer pessoal de recursos humanos para treinamento.

Para implantar novos serviços, avalia Arlete, mesmo os profissionais precisam ser treinados, posto que o preconceito está na sociedade e no profissional da saúde. Se o serviço não for acolhedor, achando que a mulher é culpada pela violência, como ela vai fazer o aborto? Vai procurar o aborto inseguro. Isso é um pecado que as pessoas fazem com as vítimas, opina.

“O aborto é uma marca indelével da sociedade e, na verdade, vivenciá-lo é extremamente difícil. Seria bom que nunca acontecesse, nem o espontâneo. Todavia, em algumas situações, ele é uma terapia”, desmistifica Arlete, que é a atual responsável pela coordenação do serviço de atenção especial às mulheres vítimas de violência sexual no Caism.

Isabel Gardenal

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