O racismo institucional decreta “fim da emergência” do zika

30 de maio, 2017

(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 30/05/2017) Dados oficiais reportados pela Sala de Situação da ONU Mulheres, tendo como fonte o Ministério da Saúde, mostram quem é a população afetada pelo vírus zika: 84,4% são mulheres negras, majoritariamente entre 15 a 29 anos de idade; e 48% são mães solteiras. É esta população que está sendo esquecida por decreto governamental.

No último dia 11 de maio o Ministério da Saúde decretou o fim da situação de emergência nacional para a contaminação e a possibilidade de decorrência da ‘microcefalia’ associada ao zika vírus, que havia sido formalizada em novembro de 2015. Entre as justificativas está a queda brusca dos registros de novas infecções na população em geral e nos casos de crianças afetadas pela síndrome congênita desencadeada pelo vírus. No entanto, o protocolo estabelecido pela Organização Mundial da Saúde para a definição de emergências sanitárias tem como um dos quatro aspectos a serem considerados o impacto do evento sobre a saúde pública.

A própria OMS encerrou a emergência internacional em novembro do ano passado, alegando que o enfrentamento deveria se tornar perene. No entanto, em 10 de março deste ano divulgou um relatório alertando que “64 nações e territórios que nunca registraram transmissão local do zika estão ‘em risco’ de ter surtos da doença porque o Aedes aegypti foi identificado dentro de suas fronteiras” e pediu “que vigilância contra a infecção seja mantida alta”.

À Agência Brasil, o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério, Adeilson Loureiro, declarou que “a mobilização do ponto de vista de pesquisa, de insumos e de recursos foi suficiente“.

Não parecem ter a mesma opinião as mulheres que recebem apenas um salário mínimo pelo período de três anos para auxiliar no tratamento das crianças que exigem apoio multidisciplinar permanente e dedicação integral. Estudo divulgado recentemente pela Anis – Instituto de Bioética após uma pesquisa de campo no Estado de Alagoas mostra uma situação de “desalento”, nas palavras da antropóloga Debora Diniz. “Mais da metade das famílias não recebia o BPC (Benefício de Prestação Continuada); uma em cada duas crianças que necessitavam de medicamentos não os recebiam gratuitamente; quase metade das crianças já em idade para a estimulação precoce não eram incluídas em programas especializados”, aponta o trabalho.

Confira aqui opiniões de especialistas sobre o fim da Emergência Nacional do Zika

Fim de situação de emergência para zika preocupa estudiosos da área (Folha de S.Paulo)

Zika: Fim da emergência ou refresco sazonal? (Folha de S.Paulo)

Fim da emergência global do zika foi um erro, dizem cientistas (UOL)

Por que os casos de zika e dengue estão despencando no Brasil (Nexo)

A ameaça do zika permanece (Human Rights Watch)

Especialistas criticaram o tom do anúncio do governo, de que o problema estaria resolvido, embora há 31 anos o país viva sazonalmente às voltas com epidemias de dengue (outra doença causada pelo mesmo Aedes Aegypt que transmite os vírus da zika e da chikunguya). Mas o que pouco se discutiu foi o conteúdo racista da decisão do governo.

As chuvas que reafirmaram ao país a situação de calamidade em que vivem populações no interior do Nordeste – região mais afetada pela epidemia desde 2015 – bem como o avanço da contaminação por chikungunya no Ceará e em Minas Gerais dão pistas de que a chegada do verão pode trazer nova onda da síndrome congênita associada ao zika, que envolve muitos mais sintomas e sequelas além da microcefalia.

A pesquisa da Anis lembra ainda que “as mulheres em risco da terceira onda de sazonalidade do mosquito estão agora grávidas e saberemos os efeitos do ‘fim do zika’ pelos meses do verão de 2018. Elas serão mães de crianças afetadas após o fim da
epidemia no Brasil”.

A novela do repelente
Em fevereiro, o governo brasileiro anunciou que a partir de março até dezembro deste ano serão distribuídos 15,9 milhões de frascos de repelentes para grávidas inscritas no Bolsa Família. Se a nova promessa se concretizar será menos que um avanço, já que desde dezembro de 2015 a medida vem sendo anunciada pelo Ministério e cobrada pelos movimentos de mulheres e de usuários do SUS.

Com base no Boletim Epidemiológico do Ministério, a Agência Brasil publicou ainda que “desde o início das investigações, em novembro de 2015, foram notificados ao Ministério da Saúde 13.490 casos [de recém-nascidos com suspeita de alterações no crescimento e desenvolvimento possivelmente relacionadas à infecção pelo vírus Zika e outras etiologias infecciosas], com 2.653 confirmações. Outros 5.712 casos foram descartados e 105 foram considerados prováveis. Há ainda 1.784 casos excluídos do sistema por não atenderem as definições de caso vigentes”. Ou seja, ficou faltando explicar o que aconteceu com 3.236 dos casos notificados. Onde estão essas pessoas? Qual é o perfil social, de gênero e racial delas? O próprio Boletim do Ministério informa que ainda estão em fase de investigação. Podem parecer estatisticamente “insignificantes”, mas suas vidas não importam menos que outras. E considerando-se o perfil majoritário dos brasileiros cuja infecção pela doença foi confirmada, esse “esquecimento” pelo Ministério parece transparecer ainda mais o racismo estrutural e institucional brasileiro.

Reiteração da negação de direitos
A epidemia do zika vem sendo apontada como um resultado da desigualdade social e do racismo estrutural do país desde o início. A invisibilidade das mulheres – que assumem a tarefa dos cuidados da crianças, são responsabilizadas individualmente por evitar a infecção e não têm nenhuma assistência para planejamento familiar e garantia de demais direitos sociais, sexuais e reprodutivos no enfrentamento à realidade de criar as crianças afetadas pela doença – também vem sendo denunciada reiteradamente por organizações de mulheres que integram a Sala de Situação sobre o zika constituída pela ONU Mulheres no ano passado.

Diante deste quadro, fica impossível não associar o levantamento da situação de emergência à tramitação da ação por descumprimento de preceito fundamental (ADPF) que tramita no Supremo Tribunal Federal para que o Estado brasileiro assegure a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez. A ADPF – que cobra o cumprimento dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e das próprias cláusulas pétreas da Constituição de 1988 – vem enfrentando forte reação do fundamentalismo religioso.

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