Brasil: país do transfeminicídio, por Berenice Bento

04 de junho, 2014

(CLAM, 04/06/2014) No Brasil a população trans (travestis, transexuais e transgêneros) é diariamente dizimada. De forma geral, os assassinatos contra esta população são contabilizados (equivocadamente, ao meu ver) no cômputo generalizante de violência contra os LGBTTT. Sugiro nomear os assassinatos cometidos contra a população trans como transfeminicídio,  reforçando que a motivação da violência advém do gênero. O conceito feminicídio foi usado a primeira vez para significar os assassinatos sistemáticos de mulheres mexicanas.

Segundo a ONG Internacional Transgender Europe, o Brasil é o país onde mais ocorrem assassinatos de travestis e transexuais em todo o mundo. Entre janeiro de 2008 e abril de 2013, foram 486 mortes, quatro vezes a mais que no México, segundo país com mais casos registrados. Em 2013 foram 121 casos de travestis e transexuais assassinados em todo o Brasil. Mas estes dados estão subestimados. Todos os dias, via redes sociais, nos chegam notícias de jovens transexuais e travestis que são barbaramente torturadas e assassinadas.

O transfeminício se caracteriza como uma política disseminada, intencional e sistemática de eliminação da população trans no Brasil, motivada pelo ódio e nojo. Qual a quantidade de mortes é suficiente para chegar a esta conclusão? No Brasil não há nenhuma fonte totalmente confiável. O que existe é um acompanhamento por algumas ONGs de ativistas LGBTT de matérias jornalísticas sobre as mortes de pessoas LGTT. Nestas notícias, as pessoas trans são apresentadas com o nome masculino e são identificados como “o travesti”. E no âmbito conceitual são consideradas como vítimas da homofobia. Acredito, ao contrário, que as mortes das mulheres trans é uma expressão hiperbólica do lugar do feminino em nossa sociedade.

Se o feminino representa aquilo que é desvalorizado socialmente, quando este feminino é encarnado em corpos que nasceram com pênis, há um transbordamento da consciência coletiva que é estruturada na crença de que a identidade de gênero é uma expressão do desejo dos cromossomas e dos hormônios. O que este transbordamento significa? Que não existe aparato conceitual, linguístico que justifica a existência das pessoas trans. Mesmo  entre os gays, é notório que a violência mais cruenta é cometida contra aqueles que performatizam uma estilística corporal mais próxima ao feminino. Portanto, há algo de poluidor e contaminador no feminino (com diversos graus de exclusão) que precisam ser melhor explorados.

Durante toda a vida a pessoa trans luta para ser reconhecida por um gênero diferente do imposto ao nascimento, no entanto, é considerada homem quando morre e mesmo a contabilidade dos mortos feito por ativistas não enfatiza a dimensão de gênero. Há um processo contínuo de esvaziamento e apagamento da pessoa assassinada.

O processo de exclusão das pessoas trans começa muito cedo. Quando as famílias descobrem que o filho ou a filha está se rebelando contra a “natureza” e que desejam usar roupas e brinquedos que não são apropriados para seu gênero, o caminho encontrado para “consertá-lo” é a violência. Geralmente, entre os 13 e 16 anos as pessoas trans fogem de casa e encontram na prostituição o espaço social para sobrevivência financeira e construção de redes de sociabilidade.

Em uma tentativa preliminar de caracterizar o transfeminicídio cheguei a seis recorrências:

1) O assassinato é motivado pelo gênero e não pela sexualidade da vítima. Conforme  sabemos, as práticas sexuais estão invisibilizadas, ocorrem na intimidade, na alcova. O gênero, contudo, não existe sem o reconhecimento social. Não basta eu dizer “eu sou mulher”, é necessário que o outro reconheça este meu desejo de reconhecimento como legítimo. O transfeminicídio seria a expressão mais potente e trágica do caráter político das identidades de gênero. A pessoa é assassinada porque além de romper com os destinos naturais do seu corpo-generificado, faz isso publicamente.

2) A morte ritualizada. Não basta um tiro fatal, ou uma facada precisa ou um atropelamento definitivo. Os corpos são mutilados por dezenas de facadas, por inúmeros tiros. Os corpos são desmembrados pelo peso do carro que o atropela várias vezes.

3) Ausência de processos criminais. Considerando que se trata de uma absoluta impunidade, pode-se inferir que há um desejo social de eliminação da existência trans com a conivência do Estado brasileiro.

4) As famílias das pessoas trans raramente reclamam os corpos. Não existe luto nem melancolia.

5) Suas identidades de gênero não são respeitadas no noticiário da morte, na preparação do corpo e no registro da morte. A pessoa assassinada retorna ao gênero imposto, reiterando, assim, o poder do gênero enquanto lei que organiza e distribui os corpos (vivos ou mortos) nas estruturas sociais.

6) As mortes acontecem em espaços públicos, principalmente nas ruas desertas e à noite.

Sugiro que a principal função social deste tipo de violência é a espetacularização exemplar. Os corpos desfigurados importam na medida em que contribuem para coesão e reprodução da lei de gênero que define que somos o que nossas genitálias determinam. Da mesma forma que a sociedade precisa de modelos exemplares, de herói, os não exemplares, os párias, os seres abjetos também são estruturantes para o modelo de sujeitos que não devem habitar a nação.

Berenice Bento é doutora em Sociologia, professora da UFRN, pós-doutoranda na CUNY/EUA (bolsa CNPq) e autora de vários livros.

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