Gênero como organizador social

22 de junho, 2016

(Brasileiros, 22/06/2016) As instituições se organizam em função dos padrões tradicionais sem se dar conta de como a sociedade vem se transformando. Gênero pode não ser mais um organizador social. Há várias formas de ser trans e o indefinido, quando os estereótipos de homem e mulher se tornam imprecisos, pode ser considerado estranho. Quem explica é a psicanalista Patricia Porchat

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Patricia Porchat prefere falar em experimentação de gênero a fechar uma teoria em torno da transexualidade. Para ela, o momento permite testes, análises, ensaios e práticas nas várias formas de ser trans – ou de não ser binário. A intervenção sobre o corpo muda e assusta a lógica do gênero como organizador social – e aí a sociedade se desestabiliza.

Patricia Porchat. Foto: Luiza Sigulem/Brasileiros

A psicanalista Patricia Porchat. (Foto: Luiza Sigulem/Brasileiros)

Professora de Psicanálise do Departamento de Psicologia da Unesp do campus de Bauru, Patricia também atende no Centro de Psicologia Aplicada da universidade, além de fazer parte do grupo de trabalho de Psicologia e Gênero da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia. Seu interesse por transexualidade começou em 2004, na época do doutorado, e por conta de seus vários pacientes homossexuais.

Ela conta que o movimento LGBT resistiu fortemente à psicologia e à psiquiatria. “Até hoje escutamos casos de pessoas que foram ao psicólogo e escutaram: ‘Vou te curar’. Uma tentativa de acabar com a homossexualidade e demover a ideia da transexualidade.” De uns cinco anos para cá, a situação vem mudando. As pessoas LGBT se aproximaram do campo psi e entendem que “é preciso tempo para se ouvir, analisar. Mas as redes e o efeito midiático fazem com que as decisões sejam urgentes”, ela avisa.

Nova ordem

Gênero é um organizador social há séculos, mas hoje não precisamos mais de tanta rigidez, o que altera a estrutura da sociedade. O lugar milenarmente reservado às mulheres também está sendo mexido. Sempre existiram pessoas que não se adequaram totalmente à identidade de gênero que lhes foi atribuída ao nascimento. Temos episódios na história, referências nas artes. Mas tenho me perguntado se não existe um efeito dessa mudança em relação aos modelos tradicionais do que é ser homem e do que é ser mulher. Como se o movimento feminista tivesse construído a possibilidade de deslocar primeiramente a mulher de um papel tradicional, propondo outro jeito de estar no mundo. Algumas pessoas trans apontam para essa questão porque fazem uma transição ou uma experimentação ou uma mudança completa. E questionam o binário.

Experimentações

Tenho gostado de falar em certa experimentação de gênero. Há aqueles que vivem uma opressão desde criança e sentem um alívio enorme ao sair do armário e se dizer trans. Mas existem outras que encontram a possibilidade de pensar: “Esse homem que vejo no meu pai, no meu tio, não sou eu, não me identifico com eles. Não sei o que sou e, se não sei o que sou, posso experimentar um pouco. Então, sou mulher? Ou sou homem de outro jeito? Ou sou algo entre os dois?” Passam a experimentar com roupas, acessórios, talvez transando. Também é possível fazer essa experimentação recebendo hormônio e aí, sim, essa pessoa está ensaiando uma mudança para outro gênero. O que se vê é uma quantidade variada de formas de ser trans ou de não ser binário. A grande diferença é a intervenção sobre o corpo, que muda tudo e incomoda. E quando se reconhece juridicamente a mudança de gênero isso tem um impacto, parece desestabilizar a sociedade.

O natural

Para a religião sempre foi claro o que é natural. Na medicina mais tradicional também. Depois dos anos 1960, acontece o movimento de desconstrução das categorias supostamente naturais, com Jacques Derrida, Michel Foucault e outros. Paul Preciado traz essa ideia de que o corpo, a sexualidade e o gênero são e fazem parte de uma forma de manifestação política ou de revolução dos costumes, ou que pode ser usada para revolucionar os costumes. Em muitos livros de psicologia está escrito que homem é isso, que mulher é aquilo. Lacan fala do homem hetero. Um homossexual pensaria diferente. Há muitas teorias, as instituições de forma geral se organizam em função dos estereótipos de gênero, que não dão conta de como a sociedade vem se transformando.

Corpo político

Dá para pensar politicamente por duas vias, uma ainda na esteira do feminismo, que aponta para a problematização desses lugares tão estanques, marcados por relações de poder, em que um é superior, que sempre estiveram presentes na história das relações de gênero. Mas a questão trans vem por outro lado: traz a questão do monstruoso, do abjeto. Se não é homem ou mulher, mas indefinido, é estranho e está para além da fronteira. A teoria Queer, que tem vários autores, trabalha com a ideia do abjeto, do excluído do campo social e quase excluído do campo do humano. Portanto, pode ser vítima de violência, de preconceito, de assassinato, etc.

Teoria e prática

Judith Butler (filósofa norte-americana, uma das principais teóricas da teoria Queer) traz a ideia de pensar o gênero não a partir dos estereótipos de gênero homem e mulher, mas a partir das travestis, dos transexuais, dos intersexos, porque são pessoas que existem e desconstroem a coerência entre anatomia, identidade, desejo e prática. O que Butler propõe não é criar um novo ser humano, mas reconhecer como humanas essas pessoas, com o direito de viverem normalmente. Ela amplia o que é gênero. Para ela, não há uma essência: gênero é uma ilusão, é o efeito de uma prática performativa por meio de gestos e palavras.

Transgressões

A adolescência é um espaço em que transgressões acontecem, mas, em relação a gênero, não sei se falaria em transgressão. Temos de ter cuidado porque existem inúmeras transexualidades e questões em relação a gênero. Se há um desconforto, precisamos entender que desconforto é esse. Um que acompanha desde criança? Ou que aparece na adolescência? Nós nos perguntamos, nessa fase da vida, se estamos confortáveis com nosso corpo, com nosso papel de gênero e, às vezes, sentimos esse desconforto na vida adulta. Para mim, tem a ver com o encontro com uma identidade. Em alguns casos, é como um adolescente que busca uma tatuagem, que está tentando expressar algo.

Estereótipos

Não faz sentido patologizar porque gênero é definido socialmente. Cada cultura e cada sociedade vão impor papéis para aquela pessoa que nasce com genitália masculina ou feminina. Não dá para falar em doença, a não ser que doença seja sempre o diferente do esperado dentro de uma sociedade. Outro ponto são os direitos humanos. Quem é considerado humano na nossa sociedade? É incrível pensar que quem foge dos estereótipos acaba considerado doente e não merecedor de respeito e de direitos. No entanto, o diagnóstico ainda é a porta de entrada nos sistemas de saúde, nos centros e ambulatórios especializados para o acesso a acompanhamento hormonal, psicológico e psiquiátrico, até chegar à cirurgia. E diagnóstico fala de patologia. Para mim, o principal é o acompanhamento do que a pessoa está vivendo. Uma das queixas dos movimentos trans é que esse acompanhamento é obrigatório por dois anos para que se possa se submeter a um processo cirúrgico. Agora, um adolescente que quer ser chamado por outro nome pode ouvir do médico: “Então você é trans e vamos logo fazer uma avaliação para resolvermos a sua questão de gênero”. É preciso respeitar o que esse adolescente está pedindo. Ele só está expressando um desconforto com seu nome, não quer outras coisas, não quer um diagnóstico.

Tempo

Para os movimentos de transexuais, é importante que as pessoas contem suas experiências de sofrimento. A maior queixa é não ter espaço para ser o que se é ou o que se sente ser. Um menino que não gosta de futebol e se identifica com o universo das meninas pode ter eventualmente uma escolha homoerótica. Ou não, ele ainda não sabe qual será a sua escolha. Em alguns casos, pode haver homofobia mesmo: um pai que não suporta um filho mais sensível, que quer brincar com coisas de menina, quer ter o cabelo comprido, desenhar. Para esse pai, é melhor se essa criança for trans do que gay: “Meu filho não brinca como menino. Desde os 2 anos vejo que ele rejeita carrinhos e adora dançar”. O que se passa na relação desses pais com essa criança? Não estou dizendo que não haja alguns casos em que a situação pode evoluir, mas como separar o joio do trigo?

A escuta

Na psicanálise, poderíamos pensar como se construiu o gênero em uma determinada pessoa escutando esse alguém. Posso analisar cada uma das pessoas trans que escuto e entender um pouco as razões que as levam para esse caminho. Mas isso também vale para as pessoas cis, ou seja, as pessoas não trans. E tenho meus embates com a psicanálise. Para mim, uma intervenção sobre o corpo não é algo absurdo. É possível. Existem outras tantas intervenções estéticas, as tatuagens, os piercings, as plásticas… Por que as intervenções que dizem respeito ao gênero seriam diferentes? A psicanálise tem respostas para algumas coisas, mas para outras, não.

“PARA MIM, UMA INTERVENÇÃO SOBRE O CORPO NÃO É ALGO ABSURDO. A PSICANÁLISE TEM RESPOSTAS PARA ALGUMAS COISAS, MAS PARA OUTRAS, NÃO”A urgência

Eu atendi um caso em que me opunha totalmente à cirurgia naquele momento. Esse paciente tinha passado por uma crise, uma internação. Gostaria que essa pessoa esperasse alguns meses, até para entender que crise tinha sido aquela, se tinha ou não a ver com a questão da transexualidade. Uma cirurgia para retirada dos seios mexe muito com a pessoa. Ele concordou no primeiro momento, mas, uma semana depois, não aguentou a espera e fez a cirurgia. Tenho de lidar com esse fato, de que existe uma urgência na resolução do sofrimento com todo o alvoroço midiático, as redes sociais. O tempo para pensar, amadurecer e ficar consigo não existe mais. A pessoa vai para casa, entra num fórum de debates, vai ao grupo do Whatsapp de amigos trans e todo mundo vai dar opinião. Isso inebria qualquer um, que não consegue pensar no que quer de fato. A psicanálise não dá conta de enfrentar isso porque a resposta psicanalítica é uma resposta no tempo.

Gênero e sexualidade

Os assuntos se misturam. Um rapaz gosta de moças e, de repente, entende que sempre se identificou com mulheres, que na verdade ela é uma mulher. Então começa a tomar hormônio, a usar roupas femininas e a adotar um nome de mulher, mas segue namorando mulheres. Não é uma escolha homoerótica, ou passou a ser a partir disso porque ela é uma mulher trans lésbica. Há uns dez anos, na Inglaterra, um excelente engenheiro, casado, pai, se separou e assumiu sua identidade feminina, se submetendo à cirurgia. Já mulher, foi eleita prefeita de Cambridge. A população considerou que o que importava naquela eleição era o fato de ela ser uma excelente profissional. Ela namorava uma mulher que também havia passado por uma transição. Ou seja, eram duas mulheres trans.

Além do binário

Eu estava em uma palestra de dois homens trans. De repente, um jovem com barba, usando saia, com brinco na orelha, levanta e fala: “Eu me chamo fulana, tenho 17 anos e quero dizer que não me identifico como homem trans, nem como mulher trans, nem como mulher, nem como homem. Sou gênero fluido e gostaria de saber o que vocês pensam disso”. Eu diria que essa pessoa, sim, tenta escapar do binarismo. Alguém nascido com genitália feminina diz que se acha trans, escolhe um nome de homem, toma testosterona para ter barba e se adequar ao gênero com o qual ele se identifica, ele tem o binarismo como referência. Mas tem  pessoas que escolhem nomes neutros, talvez porque ainda seja uma primeira etapa da transição. Outras ainda assumem uma identidade de gênero sem fazer modificações no corpo, sustentando essa posição, e não sabemos como lidar com elas. É homem ou mulher? Vai me seduzir ou trocar figurinha? Existe a mulher trans que mantém o pênis, e o contrário também. O principal é que cada pessoa possa encontrar a melhor forma para se expressar. A sociedade precisa aceitar e respeitar. Mas é complexo. Por exemplo, em uma festa, se um homem cis hétero beija uma mulher trans que mantém o pênis ou se um homem trans com vagina beija uma mulher cis hétero, às vezes dá confusão. A identidade de gênero, para a maioria das pessoas, precisa ser muito clara e coerente. O idêntico a mim deveria ser idêntico mesmo, e de repente não é. O diferente deveria ser diferente mesmo, e de repente não é. Então as coisas parecem sair do lugar. 

Cândida Del Tedesco, Fernanda Cirenza e Patricia Rousseaux

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