No Rio, aulas de defesa pessoal ajudam a combater violência contra trans

16 de abril, 2017

Lara tenta imobilizar o oponente, mas sem machucá-lo. É sua única defesa quando não está acompanhada do “cardume”, como seus colegas de treino são chamados. Não há violência, mas proteção na ação.

(UOL Notícias, 16/04/2017 – acesse no site de origem)

Ela é mentora e integrante do Piranhas Team, um grupo que se reúne às terças e às quintas, duas vezes em cada dia, para treinar em uma academia de krav-magá na Lapa, região central do Rio, a CT Tori. “Piranhas não atacam; piranhas se defendem”, diz Lara sobre o time, que reúne gays, lésbicas, travestis, bissexuais e transgêneros.

Morena Lara, ou Lara Lincoln Milanez Ricardo, 31, é transexual, nascida e criada em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Sofreu e ainda sofre as reações de uma sociedade refratária à identidade de gênero. Com o krav-magá, aprendeu a reagir. A técnica, no entanto, permite a defesa apenas quando o agressor não porte algum objeto que coloque a vida da vítima em risco.

As lições de krav-magá são consequência de dois projetos de inserção do transexual na sociedade carioca. O primeiro é o Projeto Damas, que partiu do poder público. A Prefeitura do Rio qualificou travestis e transexuais para o mercado de trabalho ao mesmo tempo em que debatia a visibilidade de gênero.

Em outra ponta, com voluntários, o curso preparatório PreparaNem tentava inserilas
na vida acadêmica, por meio de preparação específica para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). As aulas não eram dadas em locais fixos justamente para dar mais visibilidade aos transgêneros, sem que eles fossem segregados a ambientes em que apenas iguais pudessem conviver com eles.

Foi justamente um caso de uma das alunas do PreparaNem que inspirou o Piranhas Team. “A gente ouvia relatos de violências. Algumas [trans] tinham problema de pegar o ônibus para chegar à sala de aula”, diz o advogado e professor Halisson Paes, 39, ex-colaborador do PreparaNem. “Uma vez, uma das alunas levou um soco dentro de um ônibus porque foi identificada como trans, e protegê-las passou a ser um consenso. Por coincidência, duas pessoas ligadas ao movimento, uma delas trans, estava procurando uma academia na Lapa para treinamentos de defesa pessoal.

Eram Lara e seu colega de casa, Thiago. “O Thiago um dia passou por uma academia de lutas e perguntou para o dono se tinha LGBTT lá, e ele disse que não tinha nenhum. Ele [Thiago] chegou em casa com essa ideia. Os professores de krav-magá alopraram com a ideia. Um deles já tinha pensado em algo parecido, mas não sabia como fazer. No começo, tivemos um pouco de dificuldade, mas o disse-me-disse fez o Piranhas espalhar. Criamos uma hashtag, #segueocardume, e pegou”, diz Lara.

Na Lapa de Madame Satã

A Lapa foi o lugar escolhido por uma das mais famosas transexuais do Brasil, Madame Satã, e também pela academia que treina o grupo. Foi no bairro que Satã ganhou o apelido, segundo contou em entrevista ao semanário “Pasquim”, em 1975, no bloco carnavalesco “Caçador de Veados”, e ali ganhou fama de destemida. Disse ter acumulado 29 processos, com 19 absolvições e dez condenações. “Eu não brigava, apenas me defendia”, disse na conversa, publicada um ano antes de sua morte. Satã não tinha técnicas de defesa –brigava a luta de rua.

Paralelos entre os métodos de Satã e os do Piranhas Team, no entanto, param na
transexualidade. “O que fazemos é apenas para nos proteger”, afirma Lara. A técnica do krav-magá envolve táticas de luta, torções, defesa contra objetos que ofereçam ameaça, agarramentos e golpeamentos. Sua origem está ligada aos conflitos antissemitas nas ruas de Bratislava, hoje capital da Eslováquia, nos anos 1940. O objetivo, sempre, é neutralizar ataques.

“O krav-magá parte sempre da perspectiva de evitar a agressão. Nas aulas, são praticadas táticas de defesa em que é preciso ter responsabilidade, para que não nos dê a perspectiva de que a gente possa reagir a uma faca ou a uma arma de fogo”, afirma Halisson Paes. Segundo ele, é difícil achar academias que aceitem LGBTTs.

Mas transexuais são, de acordo com o estudo “A Geografia dos Corpos das Pessoas Trans”, publicado em 2016 pela Rede Trans Brasil, os mais vulneráveis a esse tipo de ação. O número de assassinados no Brasil é, em números absolutos, superior ao do restante do planeta. O país, com 900 mortes violentas nesse grupo entre 2008 e o ano passado, respondeu por 50,90% dos 1.768 homicídios na América Latina. A Ásia teve no mesmo período 202; a América do Norte, 159; a Europa, 116; a África, 13; e a Oceania, 5.
São Paulo e Rio lideraram as mortes em 2016, com 18 e 13 casos, respectivamente, em um total de 123 assassinatos. O modo como as mortes ocorriam demonstrava a violência dos atos. Se havia mais mortos por arma de fogo (66), a maioria dos casos demonstrava crueldade: faca, facão e foice, pauladas, asfixia, espancamento, carbonização, pedradas, atropelamento, tortura e afogamento.

A expectativa da vida para esse grupo social, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), era inferior a 35 anos em 2013, quando a média nacional era de 74,9 anos. Este é o dado mais atualizado sobre o grupo.

“Quando pesquisava para o Projeto Damas, há um tempo, encontrei fotos horríveis [de violência praticada contra transexuais]”, afirma Lara. “E, no nosso mundo, existe uma palavra que detestamos que é a passabilidade –meninas que passam batido como mulher, ou meninos que passam batido como homens. As que não passam estão mais expostas às agressões. Esses crimes [contra as trans] querem destruir nossos corpos, nossa identidade de gênero.”

Agressões na família
Lara tem um histórico de agressões comum às transexuais. Começou ainda na família, quando sofria ameaças de um tio (“ele só parou quando descobriu que o filho era gay”, diz), e ainda a persegue. “Eu já reagi a quatro tentativas de assalto. Não é algo inteligente a fazer, mas nos treinos a gente percebe se o cara está armado ou não. Aprendi a usar os sentidos a meu favor”, conta. “Aprendi a fugir de um agarrão, de um estrangulamento, de um soco e a como exercitar os reflexos — se alguém tentar um beijo à força, aprendemos nas aulas como sair dessa situação.”

Na semana em que conversou com a reportagem, Lara descreveu uma situação em que teve que fugir de dez homens que a perseguiam em Parada Angélica, em Duque de Caxias. “Eu voltava da casa de uma irmã, e tinha um grupo de rapazes no caminho. Um deles mexeu comigo, e não dei atenção. Os outros riram dele. Ele veio e me deu um empurrão e um chute. Me safei o empurrando e entrei em uma favela até chegar de volta à casa de minha irmã. Ralei as mãos, as duas.”

Por um breve período, por problemas financeiros, Lara precisou sair do Piranhas Team. Os outros alunos do grupo assumiram a cotização das mensalidades não só para ela, mas também para todos os transexuais –além dela, havia mais dois, um homem e uma mulher. “A gente descobriu o quanto é difícil trazer a trans por dificuldade econômica”, afirma Halisson. “Me disseram que eu não poderia sair, pois era a alma do grupo”, diz Lara. “O professor disse apenas para que aplicasse golpes suaves para não machucar os colegas porque ele me tinha como a aluna mais bruta da classe”, ri.

Marcos Sergio Silva

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