O caso de Jean Wyllys ou dois pesos e duas medidas, por Lilia Schwarcz

02 de janeiro, 2017

O que se discute é um processo de mais longo curso. Como efetivamente enfrentar a homofobia? Como fazer valer direitos da comunidade LGBT? Como lidar com um modelo que padece de dois pesos e duas medidas?

(Nexo Jornal, 02/01/2017 – acesse no site de origem)

Uma vez que esta é minha primeira coluna do ano, seria de bom alvitre dar a ela um tom de celebração, mais apropriado a um “novo começo”. Desejo, sinceramente, que tenhamos um 2017 mais generoso do que foi 2016; esse ano que não deixa muitas saudades.

O fato é que o ano que agora mora no passado legou uma imagem dura de festejar. Se a história ensina que o tempo não volta atrás, o certo é que 2016 há de ficar na memória como um período em que praticamos a dança do dois passos para frente e três para trás.

Com o objetivo de evitar o recurso à retrospectiva, seleciono aqui apenas um caso, mas que tem a capacidade de iluminar vários outros. Além do mais, escolho um exemplo que terá seu desenlace final apenas neste ano de 2017. Hora, portanto, de abrir o calendário e prestar atenção nele.

Refiro-me ao processo que ainda corre na Câmara em torno do caso do deputado federal Jean Wyllys de Matos Santos, do PSOL (RJ), cujo mandato pode estar em perigo. Para aqueles que não lembram do evento, convido a que recuem comigo até 17 de abril de 2016: dia da votação do impeachment da presidente Dilma. Já escrevi a respeito dessa sessão, aqui no Nexo, e não pretendo voltar a analisar esse triste momento de nossa história, quando parte significativa de nossos deputados federais demonstrou abuso de personalismo e do palanque. Vou me ater, pois, a um episódio que ganhou as manchetes de nossos noticiosos: a cuspida que o deputado do PSOL deu em seu colega de Parlamento, Jair Messias Bolsonaro, do PSC.

Tomada em si mesma, a atitude poderia ser considerada como “falta de decoro parlamentar”. Aliás, foi nesses termos que se abriu o processo – de número 110.482/2016 –, apresentado, entre outros, pelo Sr. Alexandre Frota de Andrade e pelo deputado Ezequiel Teixeira (PTN-RJ). Mas um evento público como esse sempre traz consigo uma série de significados em disputa. Vamos, portanto, com calma nessa contabilidade complicada da nossa Câmara dos Deputados, que tem “razões que a própria razão desconhece”.

Não é preciso acreditar em história de cegonha ou em Papai Noel para reconhecer que notícias e imagens são passíveis de muita manipulação. Também sabemos que nem tudo o que se vê é tão somente o que ocorre. Por exemplo, no caso em questão, uma prova fundamental da acusação foi justamente um vídeo postado pelo deputado Eduardo Bolsonaro – o filho da “vítima”— em sua página do Facebook no dia 18 de abril. A divulgação do vídeo tinha o objetivo de mostrar que o gesto de cuspir fora premeditado; para tanto, Eduardo editou o material e tomou a consequência como causa. Ou seja, apresentou Jean Wyllys comentando com o deputado Chico Alencar – “eu vou cuspir na cara do Bolsonaro!”. Na verdade, ele apenas constatou o que fizera: “eu cuspi na cara do Bolsonaro”. Aqui o tempo verbal não é mero detalhe, assim como o resultado da acareação: o vídeo foi desconsiderado, julgado fraudulento, mas, mesmo assim, o processo, do qual o material era prova cabal, continua vigente.

Há, ainda, mais fumaça nessa fogueira. Qualquer advogado de defesa ou promotor aprende que, para bem avaliar uma história, é preciso recorrer a seus antecedentes e fazer um balanço da “cena do crime”. Não é de hoje, por exemplo, que o deputado Jair Bolsonaro toma atitudes de violência de gênero, com direito a demonstrações de homofobia e de desrespeito diante dos colegas que não seguem sua cartilha moral.

Jair Bolsonaro já ofendeu a deputada Maria do Rosário (PT-RS), em episódio registrado pela TV Câmara, chamando-a, ainda nos idos de 2013, de “vagabunda”, ou dizendo que não a estuprava porque “ela não merecia”. Em dezembro de 2014, voltou à carga. Afirmou que “jamais iria estuprar” a deputada, porque ela “não merecia”. Explicou que a considerava “muito feia” e concluiu: “não faz meu gênero”. A frase não poderia ser mais reveladora. Gênero é aqui afirmação de masculinidade, mas é também questão de gosto. Como diz o provérbio: “gostos não se discutem”; mas se lamentam (e muito).

Também ficou famoso o episódio em que Jair Bolsonaro agrediu uma repórter da Rede TV nos corredores da Câmara, chamando-a de idiota, ignorante, analfabeta. E terminou, galante: “Estou cagando pra você, Estou me lixando pra você!, Fora daqui, vai”. A coleção de frases do deputado do PSC constitui prova fidedigna de como, sistematicamente, ele afronta nossos direitos civis mais elementares. Uma vez deu conselhos a um pai de que se o filho era “meio gayzinho”, o melhor era “levar um couro”. E finalizou: “A gente precisa agir”. Para que entendamos melhor a mensagem, vale recorrer a uma declaração proferida pelo mesmo político mas em outra circunstância: “Qual pai tem orgulho de um filho gay? … Vocês estão destruindo a família com essa hipocrisia de homofobia, palavra fácil. Vivem das tetas do governo”.

SE A CÂMARA DECIDIR DAR CONTINUIDADE AO PROCESSO QUE ENVOLVE O DEPUTADO DO PSOL, O CERTO SERIA ABRIR MAIS UM OUTRO: CONTRA JAIR BOLSONARO

Enfim, livre pensar é só começar, mas essas frases, emitidas sem pejas e de forma reiterada, são indícios barulhentos de como o deputado do PSC tem como prática desfazer de qualquer orientação política, sexual, religiosa ou cultural com a qual não comungue.

E dentre seus principais alvos está, justamente, o deputado Jean Wyllys, assumidamente homossexual, defensor dos direitos civis e das minorias, e eleito por duas vezes com grande número de votos. E a história é antiga. No dia 29 de junho de 2011, durante reunião do Conselho de Ética e Decoro, Jair Bolsonaro atacou o deputado do PSOL dizendo que havia “um parlamentar presente que não fica chateado quando é chamado de viado”. Durante a reunião da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, de 13 de março de 2013, Jair Bolsonaro ergueu um cartaz onde se lia “queimar rosca todo dia”.

Em 29 de junho de 2012, na audiência pública da Comissão de Segurança Social e Família da Câmara dos Deputados, o deputado Jair Bolsonaro acusou Jean Wyllys e demais membros da Frente Parlamentar em Defesa da Cidadania LGBT de “estimular” e desencaminhar crianças, com a distribuição de cartilhas de orientação homoafetiva. Em 7 de maio de 2015, Bolsonaro chamou o deputado do PSOL de “elemento”, “hipócrita” e “idiota”, e daqueles que “usa papel higiênico para limpar a boca. Ainda de posse do microfone, completou seu pensamento com frase lapidar: “O último órgão do aparelho excretor, porque tem um deputado aqui que ama esse órgão”.

Mas antes que essa coluna fique com jeito de seriado, daqueles em que o suspense segue para o próximo capítulo, é tempo de voltar ao caso que motivou este texto: “a polêmica em torno da cuspida”. Mais uma vez, e agora usando uma lente de aproximar, vale focar melhor a cena e chegar a seus bastidores. Foi durante aquela sessão histórica, bem na hora em que Jean Wyllys se dirigia à tribuna, que Bolsonaro gritou: “viado, queima-rosca e boiola”. Assim que o deputado do PSOL terminou sua fala, Jair Bolsonaro aproximou-se dele, sendo filmado por seu filho Eduardo, e repetiu uma expressão acompanhada por trejeitos afeminados. “Tchau querida!”, insistiu ele à frente de várias testemunhas. Questionado algum tempo depois, o deputado do PSC alegou que a frase nada tinha de pejorativo e se dirigia à presidente que estava prestes a perder o cargo. Como o significado de uma frase se dá sempre em contexto, é mesmo difícil acreditar na idoneidade da interpretação.

Há, também, a gota d’água: a homenagem que Jair Bolsonaro fez ao coronel Brilhante Ustra, em sua breve fala. Censura não se aplica, jamais. Mas vale questionar a menção positiva e a ocasião escolhida. Ustra foi um conhecido torturador da ditadura militar, que ficou famoso por sua expertise, entre outros, em seviciar mulheres presas por acusação de terrorismo. A frase do deputado do PSC não era portanto inocente ou aleatória. Tratava-se de evidente ato de desrespeito à Dilma Roussef que, como é notório, padecera nas mãos desse mesmo militar.

Por essas e por outras é que se a Câmara decidir dar continuidade ao processo que envolve o deputado do PSOL, o certo seria abrir mais um outro: contra Jair Bolsonaro, que tem sistematicamente violado princípios constitucionais, promovendo o ódio contra minorias sexuais. Como explicar o fato do deputado do PSC jamais ter recebido qualquer advertência, mesmo diante de tantas atitudes discriminatórias? Não há falta de decoro em ofensas que advogam abertamente a homofobia? Se ninguém está acima da justiça — e todos nós temos a obrigação de oferecer explicações para atos considerados dolosos — é preciso, porém, vigiar a própria atuação da Câmara, exigindo que ela analise, em igualdade de condições, a todos os envolvidos.

Não há como esquecer, por fim, os autores desse processo. De um lado está o ator e diretor Alexandre Frota, que costuma referir-se a Jean Wyllys nos seguintes termos: “mocinha”, “cobra venenosa”, “ariranha”, “sujeito sujo e desonesto”, “puta”, “lixo em pessoa”, “esmagador de linguiça”, “desqualificado” e assim vamos. Outro nome diretamente implicado no caso é o deputado e pastor Ezequiel Teixeira, que foi quem protocolou a representação para que a Mesa Diretora da Câmara de Deputados encaminhasse ao Conselho de Ética o pedido de processo disciplinar contra o deputado do PSOL. O mesmo Ezequiel Teixeira que ficou famoso quando atuou, por dois meses, como Secretário Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro. Nessa época, o político discorreu sobre sua posição contra o casamento homoafetivo e ainda afirmou acreditar na “cura gay”, comparando a homossexualidade a doenças como Aids e câncer.

“PERDER”, NESSE CASO, NÃO LEVARÁ APENAS A UMA CONDENAÇÃO INDIVIDUAL; SOMOS TODOS NÓS QUE SAIREMOS LESADOS EM NOSSOS DIREITOS MAIS BÁSICOS.

A Constituição Federal, já em seu preâmbulo, assegura o exercício dos direitos sociais e individuais “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação”. Mesmo assim, a lei é ainda pouco acionada. Tanto que uma pessoa da comunidade LGBT é morta a cada 27 horas no Brasil em razão de homofobia. Somente no ano de 2015, foram 318 assassinatos.

A perda do mandato de um deputado está prevista apenas em casos excepcionais e de clara comprovação de crime contra o Estado. Jean Wyllys, ao contrário, tem feito carreira solo na defesa das minorias e na luta pelo direito à diferença; termômetros seguros de uma democracia saudável.

Toda história tem um antes e um depois: um contexto também. No caso do processo que envolve Jean Wyllys – um político eleito por três vezes, pelo prêmio “Congresso em Foco”, como o melhor deputado federal do Brasil – a medida mais lembra a metáfora de uma balança desequilibrada.

O que se discute aqui, portanto, não é apenas o ato de Jean Wyllys, mas antes um processo de mais longo curso. Como efetivamente enfrentar a homofobia? Como fazer valer direitos da comunidade LGBT? Como lidar com um modelo que padece do, assim chamado, dois pesos e duas medidas?

Ao que tudo indica, e se correr sem interrupções ou novos desenlaces, o processo movido contra o deputado Jean Wyllys, ainda pode durar longos três meses. Esse é, pois, um bom motivo para começarmos este ano praticando a pressão e a vigilância cidadãs. Só assim será possível arquivar uma pena injusta e seletiva.

“Perder”, nesse caso, não levará apenas a uma condenação individual; somos todos nós que sairemos lesados em nossos direitos mais básicos. Na verdade, são os brasileiros que acreditam na diferença e na pluralidade que estão sendo julgados; junto com Jean Wyllys.

Que 2017 chegue oferecendo provas de apego irrestrito à justiça, à cidadania, à equanimidade e à igualdade; direitos que não temos como delegar ou abrir mão.

Ps: ainda no final de 2016 causou indignação a notícia da morte de Luiz Carlos Ruas, um vendedor ambulante que circulava nas imediações da estação Pedro 2º do Metrô de São Paulo. Não se sabe ao certo se ele faleceu ao proteger uma travesti ou um morador de rua, homossexual, e que morava nas redondezas. O que não se discute é como esse foi mais um crime motivado por violência de gênero. A sociedade brasileira é que sai lesada quando se incita ou admite a homofobia.

Lilia Moritz Schwarcz é professora da USP e Global Scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “O sol do Brasil” e “Brasil: uma biografia”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil” e “Histórias Mestiças”. Atualmente é curadora adjunta do Masp.

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