Um julgamento sobre o reconhecimento da identidade de transexuais, por André Cabette Fábio

16 de outubro, 2016

Superior Tribunal de Justiça decidirá se uma pessoa pode alterar seu sexo no registro civil mesmo sem que tenha realizado a operação de redesignação

(Nexo, 16/10/2016 – acesse no site de origem)

No dia 11 de outubro, o Superior Tribunal de Justiça iniciou um julgamento que vai decidir se uma pessoa pode alterar seu sexo no registro civil mesmo sem que tenha realizado a operação de redesignação sexual.

O julgamento foi interrompido por um pedido de vistas. O ministro Raul Araújo quer mais tempo para que possa analisar o caso. O processo deve ser retomado num prazo de dois meses.

A decisão do STJ será importante porque, atualmente, não há lei brasileira que garanta a transexuais o direito de mudar seus documentos, tanto no que diz respeito ao nome, como no que diz respeito ao sexo, de acordo com o gênero com o qual se identificam.

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Impacto na busca pela identidade

O julgamento em questão tem origem em um caso ocorrido no Rio Grande do Sul. O Tribunal de Justiça do Estado permitiu a uma transexual a alteração do nome. Mas a alteração do sexo no registro civil para feminino não foi aceita.

O argumento é que essa transsexual não realizou a operação de redesignação sexual, popularmente conhecida como de “mudança de sexo”, portanto não seria adequado fazer a mudança oficialmente em seu documento.

Segundo a decisão, “a definição do sexo é ato médico, e o registro civil de nascimento deve espelhar a verdade biológica, somente podendo ser corrigido quando se verifica erro”.

Há, porém, transexuais que conseguem a mudança do registro sem que tenham realizado a operação. Isso varia de juiz para juiz, afirma Patricia Mannaro, que participa da comissão de direitos humanos da divisão paulista da Organização dos Advogados do Brasil e da Rede Feminista de Juristas.

A alteração do registro civil funciona como uma espécie de retificação da certidão de nascimento. A partir dela, uma transexual que nasceu com o sexo biológico masculino, mas que se entende como do gênero feminino, pode alterar nome e sexo em seus registros. O mesmo vale para um transexual nascido com o sexo feminino, mas que se entende como homem. Com um novo registro civil, todos os outros documentos, como RG e CPF, são alterados.

Questão tem vácuo legislativo

Na falta de regulamentação e garantias legais, a única forma de transexuais alterarem seu registro civil é por meio de pedidos na Justiça. Por isso, as pessoas transexuais dependem do entendimento individual dos juízes. E a Justiça, com frequência, faz exigências como pareceres de psicólogos e psiquiatras, além de cirurgias, como é o caso que originou a ação julgada pelo STJ.

“Há uma lacuna gravíssima do legislativo [por não ter criado uma lei de identidade de gênero]. O judiciário tem um papel importante nessa questão por causa disso, mas a maioria dos juízes não tem formação em gênero”, afirmou, em entrevista ao Nexo, a psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus, professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro que lida com identidade de gênero.

A decisão do STJ não será vinculante. Ou seja, não será obrigatoriamente seguida em outras instâncias e não teria “força de lei”. Mas, seja qual for, abrirá um precedente importante e deve ser usada como referência por juízes de instâncias inferiores.

Caso o STJ decida que a cirurgia não é necessária, o direito a mudar o sexo que consta nos registros será mais facilmente assegurado. Caso decida que a cirurgia é necessária, transexuais terão uma nova e poderosa barreira ao reconhecimento de suas identidades de gênero.

Como votou o relator do processo

O ministro do STJ Luis Felipe Salomão é relator do processo. Segundo sua avaliação, o Estado não pode permitir a alteração do sexo no registro civil apenas quando há cirurgia.

Ele afirma que “a compreensão da vida digna abrange o direito fundamental de os transexuais serem identificados, civil e socialmente, de forma coerente com a realidade psicossocial vivenciada, a fim de ser combatida qualquer discriminação ou abuso”.

Para o ministro, a alteração do primeiro nome “configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa)”. Por isso, a manutenção do sexo no registro civil causa “incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil”.

Para ele, o STJ deve se adaptar a modificações nos costumes da sociedade e superar “preconceitos e estereótipos”. Reconhecer a identidade de gênero seria uma forma de combater discriminação e abuso contra transexuais. Os outros ministros ainda não votaram.

‘Identidade não é construída por um processo cirúrgico’

Uma pessoa não precisa ter passado por cirurgia, ingestão de hormônios ou qualquer outra parte do processo de redesignação sexual para se considerar transexual mulher ou homem. Por isso, a exigência de uma cirurgia para alterar o sexo que consta no registro civil é criticada.

“Isso [a exigência de cirurgia] só mostra que o Brasil é um país com violência estrutural, que não respeita direitos civis ou à vida. Na psicologia entendemos que o direito à identidade deve ser reconhecido. E a identidade não é construída por um processo cirúrgico”, afirma Jaqueline Gomes.

“Ao obrigar uma pessoa a se mutilar [através de cirurgia] para que mude o próprio nome, o Estado está lesando sua individualidade”, afirma Patrícia Mannaro, que ressalta não falar em nome das entidades das quais participa, como a OAB paulista.

Há propostas alternativas no STF e no Congresso
Está em discussão no Supremo Tribunal Federal a ação direta de inconstitucionalidade 4.275, que tenta garantir a transexuais o direito a mudança de nome e sexo registrados independentemente de uma cirurgia de redesignação. Essa decisão pode ser vinculante, ou seja, teria de ser obrigatoriamente seguida por todos os juízes de instâncias inferiores.

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, assinou em julho um parecer favorável à alteração do registro civil de transexuais sem que haja cirurgia.

Além disso, está em tramitação no Congresso o projeto de lei 5.002, de 2013, apresentado por Jean Wyllys (Psol-RJ) e Érika Kokay (PT-DF).

Batizado de João Nery, em homenagem ao transexual homem militante brasileiro autor das autobiografias “Erro de Pessoa” e “Viagem Solitária”, o projeto determina o reconhecimento da identidade de gênero como direito do cidadão.

Dessa forma, o processo passaria a ser feito em cartórios, e não judicialmente. Esse direito é reconhecido em países como Argentina, Uruguai e Espanha.

Militantes LGBT avaliam, no entanto, que a composição atual do Congresso torna improvável que o documento seja colocado em votação e aprovado, por isso grande parte da comunidade transexual alimenta expectativas especialmente em relação às decisões do judiciário.

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