Questões morais, por Rosiska Darcy de Oliveira

13 de setembro, 2014

(Blog do Noblat/O Globo, 13/09/2014) Em visita a um templo evangélico, Aécio Neves, depois de fervorosas orações, declarou que era “contra o aborto e contra as drogas”. Como se alguém, afora os que lucram com o aborto ilegal ou os traficantes, fosse a favor do aborto ou das drogas. Temos consumido anos de argumentação em debates a respeito da descriminalização da interrupção da gravidez indesejada ou do fracasso da guerra às drogas.

Trata-se de problemas de saúde pública e de dramas humanos pungentes. Declarações simplistas, talhadas para o auditório, não diminuem o número de abortos nem abrem caminho para políticas mais humanas e eficientes de combate às drogas.

O tema da homofobia também saiu do armário nessas eleições. A homofobia é manifestação de violência corriqueira que, quando não mata ou fere, envenena com humilhação a vida dos gays. É odiosa e criminosa, assim como o racismo.

O projeto de criminalização da homofobia está travado no Senado há oito anos. Quem for presidir o país vai poder ignorar os milhões de manifestantes que desfilam nas grandes e médias cidades em paradas do orgulho gay? Uma parcela da população não aceita mais que eles sejam assassinados e ofendidos. Não se trata de uma questão menor.

Margaret Thatcher não acreditava que existisse essa coisa chamada sociedade. Esquecia que Gandhi, fragílimo e desarmado, expulsou os ingleses da Índia apoiado nessa coisa que ela achava que não existia. Gandhi dizia que “uma árvore que cai, faz muito barulho, uma floresta que germina não se escuta”. Frase oportuna para pensar o Brasil.

Só ouvíamos o barulho espetacular da queda em desgraça dos velhos partidos políticos enquanto uma nova sociedade germinava. Esse barulho de árvores mortas que tombam torna inaudível a germinação silenciosa de uma liberdade de pensamento que foi penetrando na sociedade, aquela que supostamente não existe, mas viceja em sua imensa diversidade e luta pelas causas que lhe são caras.

Germinou uma democracia do cotidiano, vivida em profundidade por cada um, onde o que comanda é a liberdade de escolha, o direito de decidir sobre a sua própria vida. Os gays sabem que o amor é um pássaro louco que ninguém sabe onde pousará. As mulheres aprenderam nos embates duríssimos da vida real que seus corpos lhes pertencem. Agem e defendem-se em consequência.

As opiniões sobre questões morais se formam, cada vez mais, em círculos de confiança, exprimindo uma subjetividade trabalhada e sofrida, insubmissa às palavras de ordem de partidos ou dogmas religiosos.

Esse exercício de liberdade em que a sociedade se autotransforma extravasa da lógica partidária que tudo submete à luta pelo poder a qualquer preço ou das igrejas que submetem a espessura da vida real ao fogo dos infernos. É nos fios cruzados dos círculos de confiança, da capilaridade das redes sociais e da mídia onipresente que circulam argumentos e deliberações.

As meias palavras não aproveitarão aos candidatos. As liberdades morais entraram na agenda política e são incontornáveis. Talvez se esteja subestimando a sociedade, julgando-a mais conservadora do que ela de fato é. E não se tenha percebido que a expectativa do eleitor, essa sim esmagadoramente majoritária, é a credibilidade do candidato. Que cada um esteja realmente por trás do que diz. Honestidade também é uma questão moral.

O Brasil é um Estado laico, garantia sólida contra o fundamentalismo religioso. Maior garantia ainda é a capacidade do cidadão de formar sua opinião e assumir a autoria de sua vida. Nisso reside uma nova postura que não se aplica apenas aos costumes, mas também às escolhas políticas.

Foi essa nova postura que Marina Silva, na sabatina do GLOBO, destacou: “O mundo está mudando, existe um novo sujeito político que quer papel de autor.” Filha da floresta, talvez tenha ouvido essa germinação, o que explicaria a esperança que suscita.

A questão moral que deveria ocupar o proscênio nessa eleição, porque há anos revolta a sociedade, não é o comportamento privado, dos gays, das mulheres, dos que usam drogas. É a deslavada corrupção que se instalou no Brasil como instrumento de governo. Essa sim, obscena e imoral, porque predadora do dinheiro público, tem que ser criminalizada nos atos e não apenas em declarações de princípio.

É esse mundo sombrio que o debate sobre moral deve iluminar. Possam os gays amar em paz. Socorram-se, nas melhores condições, as mulheres em desespero. Que sejam acolhidos os que se perderam nas drogas. Guarde-se a prisão para os verdadeiros bandidos.

Rosiska Darcy de Oliveira é escritora

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