Superlativa, por Flávia Oliveira

07 de setembro, 2017

Rogéria, autodenominada ‘travesti da família brasileira’, fez crer que país sem LGBTfobia é possível

(O Globo, 07/09/2017 – acesse no site de origem)

Estrelíssima foi o adjetivo que Rogéria escolheu para se apresentar numa rede social. Não exagerou. A mulher que habitava o corpo de Astolfo Barrozo Pinto brilhava. No superlativo. Foi maquiadora e atriz e cantora e dançarina. Tinha múltiplos talentos, portanto. E o dom de encarnar o sonho de uma nação livre dos crimes de ódio contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros. Num país que mata uma pessoa LGBT a cada 25 horas, é ato de bravura se autodeclarar “a travesti da família brasileira”. Rogéria jamais se escondeu. Viveu, foi acolhida e morreu sendo o que era. Deixa de herança a verdade.

Leandra Leal, atriz e diretora de “Divinas divas” — documentário sobre os 50 anos de carreira da primeira geração de artistas travestis do país, Rogeria entre elas — lembrou, na despedida, de uma frase da homenageada: “Eu não tenho bandeira, eu sou a bandeira, ela dizia. E era mesmo, porque sua presença significava muito”. No roteiro de debates em torno do filme, Leandra ouviu de mães brasileiras que a existência de Rogéria as ajudara a compreender — e aceitar — a orientação sexual ou a identidade de gênero dos filhos. “Elas viam a artista, a cidadã, a filha, a irmã e enxergavam a dignidade de seus familiares”, resumiu.

Mundo afora, a população LGBT está entre os grupos que mais sofrem violações de direitos humanos. Há países que autorizam a discriminação por meio de leis. No Brasil, episódios de preconceito e violência se acumulam no século XXI, evidência de uma sociedade que parece retornar ao passado, enquanto o tempo caminha para o futuro. O Grupo Gay da Bahia contabilizou no ano passado 343 homicídios, recorde em quase quatro décadas de mapeamento. O país, segundo a ONG, ocupa o topo do ranking dos crimes contra minorias sexuais. Em 2017, até o início de maio, foram 117 assassinatos.

Em 2016, o Disque 100, serviço do Ministério dos Direitos Humanos, registrou 1.876 ocorrências contra LGBTs: de discriminação a negligência, de tortura a estupro, de violência psicológica e institucional a agressão física. São cinco denúncias por dia, que fazem dos LGTBs o quarto grupo populacional mais exposto a abusos. À frente estão crianças e adolescentes (76.171 ligações), idosos (32.632) e pessoas com deficiência (9.011). A violência contra mulheres é denunciada em outro canal, o Disque 180.

O Brasil ainda deve a gays, lésbicas, bissexuais e trans uma legislação que criminalize a violência de que são vítimas, nos moldes do que já existe para combater agressões domésticas (Lei Maria da Penha, 11.340/2006) e feminicídio (Lei 13.104/2015). Políticas públicas de atenção à saúde, acesso à educação e ao mercado de trabalho são igualmente necessárias para que a igualdade prevista na Constituição Federal se estabeleça.

Do ponto de vista simbólico, o pesar coletivo com a morte de Rogéria alimenta a esperança de um Brasil respeitoso e fraterno. Pelo Teatro João Caetano, onde a artista foi velada antes do sepultamento na cidade natal, Cantagalo (RJ), além de celebridades como Gloria Pires, Isadora Ribeiro, Jorge Omar Iglesias (a drag queen Isabelita dos Patins) e Jane di Castro, passaram anônimos de todas as idades, gênero e cor de pele.

Visivelmente emocionado, estava Bruno Ferreira Oliveira, que ganha a vida como estátua viva no Largo da Carioca. Ele foi se despedir em agradecimento ao dia em que Rogéria, de passagem pelo Centro do Rio, enxergou sua arte e depositou uma nota de R$ 20 na caixinha de contribuições. “Ela me viu e ajudou. Eu nunca esqueci. Por isso, vim”, disse o jovem, que homenageou Rogéria pela humanidade que ela, não só exibia, como jamais deixou de enxergar nos outros. Que esteja em paz.

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