CNJ resgatou minha honra e deu recado à Justiça, diz juíza censurada

31 de agosto, 2017

Censura. Foi isso o que sofreu a juíza Kenarik Boujikian Felippe, 57, ao ser processada e condenada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo depois de expedir alvará de soltura de 11 presos provisórios que, segundo os autos, já haviam cumprido suas sentenças mas ainda estavam atrás das grades.

(Folha de S.Paulo, 31/08/2017 – acesse no site de origem)

Foi a própria presidente do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ministra Cármen Lúcia, que evocou o termo durante sessão que revogou, por 10 votos contra 1, a sanção aplicada pelo TJ-SP à juíza, ironicamente chamada de “pena de censura”, em que o juiz fica impossibilitado de receber promoções.

“Me parece […] que tenha havido não uma imposição de pena de censura, […] mas que tenha sido censurada a própria magistrada pela sua conduta e pela sua compreensão de mundo, incidindo sobre os fatos por ela examinados e julgados. E isso é grave”, declarou a ministra do Supremo.

A punição de Kenarik, cofundadora da Associação Juízes para a Democracia, havia mobilizado instituições ligadas à Justiça e aos direitos humanos, como IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), Pastoral Carcerária, Conectas e Sou da Paz.

Elas criticavam o Judiciário paulista que, em vez de se preocupar com prisões provisórias excessivas e superlotação das prisões, punia a magistrada que agiu neste sentido –o TJ não comentou a decisão.

Segundo o último relatório do Departamento Penitenciário, o Estado de São Paulo tem 130 mil vagas prisionais e 219 mil presos. Destes, 15% são presos são provisórios.

RAIO-X

ORIGEM
Descendente de armênios, nasceu na Síria e veio para o Brasil aos 3 anos

FORMAÇÃO
Direito pela PUC São Paulo

CARGO
Juíza desembargadora do Tribunal de Justiça-SP

CARREIRA
Já trabalhou na Procuradoria Geral do Estado de SP e é cofundadora da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Grupo de Estudos e Trabalhos Mulheres Encarceradas. Ficou conhecida ao atuar no caso do ex-médico Roger Abdelmassih, condenado a 278 anos de prisão por ter estuprado ou violentado 39 mulheres

VOTOS DO CNJ

“O Tribunal de São Paulo agiu mal. Não agiu bem. E por que não agiu bem? Porque ele arruma uma desculpa estapafúrdia para censurar no fundo e ao cabo a decisão meritória da juíza”
JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Corregedor Nacional de Justiça

“Há uma diferença óbvia entre censura como pena e ser censurado, que é algo que a Constituição proíbe para qualquer expressão. […]Me parece […] que tenha sido censurada a própria magistrada pela sua conduta e pela sua compreensão de mundo incidindo sobre os fatos por ela examinados e julgados. E isso é grave”
CÁRMEN LÚCIA, ministra do STF e presidente do CNJ

“Está nítido nos autos que a magistrada está sendo punida em razão do teor das decisões que proferiu. Em particular afronta ao artigo 41 da Lei Orgânica da Magistratura. […] Instalou-se, na verdade, um conflito intelectual entre ela e os desembargadores. Mas disso não pode, em hipótese alguma, resultar em punição imposta pelo colegiado majoritário”
GUSTAVO ALKMIM, conselheiro do CNJ

*

Como avalia a decisão do CNJ?

Ela é muito importante pra mim em termos pessoais, para resgatar uma questão de honra e de princípios. Mas vai além de mim. O caso teve certa visibilidade, o que gerou uma caminhada solidária de pessoas com o mesmo propósito: de pensar a questão prisional. O CNJ reiterou a importância da independência judicial, uma mensagem muito forte para o país e todos os juízes.

O que significa essa independência judicial?

É uma prerrogativa da atividade jurisdicional posta para que nenhum juiz sofra pressão interna ou externa para decidir desta ou daquela forma. Isso não significa que o juiz pode decidir o que quiser, pois ele tem de seguir a normativa nacional e os tratados internacionais. Também não significa que as sentenças não possam ser questionadas.

Existe a contestação dentro dos mecanismos legais, através do recurso. Uma decisão absurda também pode ser questionada e levar o juiz a ser punido, o que ocorre ainda se ela [decisão] é eivada de vícios não-republicanos, como nos casos de corrupção. A independência judicial é uma garantia do juiz, mas ela visa resguardar o cidadão.

Como o seu caso se relaciona a essa questão?

Foi imputado a mim que decidi [pela soltura dos presos] de forma monocrática, ou seja, sozinha. E o desembargador que me representou entendia que a decisão deveria ser do colegiado. A regra do tribunal é essa, mas existem as exceções, em que decisões monocráticas de questões urgentes são depois submetida à Câmara, que confirma ou não a decisão de forma colegiada. Errado seria subtrair a possibilidade da decisão colegiada, o que não aconteceu nos meus processos.

Por que então a sra. foi alvo de um processo administrativo?

[Risos] Essa é uma boa pergunta. Eu determinei a expedição de alvará de soltura clausulado para os casos em que constatei que o tempo de prisão do indivíduo já tinha decorrido e não tinha informação de soltura. Não tinha outra coisa a fazer, porque manter uma pessoa presa nestas circunstâncias é uma ilegalidade. Era caso de urgência. Não podia fingir que não vi e tampouco cruzar os braços.

Mas eu não tinha posições majoritárias na 7ª Câmara Criminal do TJ-SP, onde estava. Isso é um fato.

Havia divergências com o restante dos desembargadores da Câmara [do tribunal]?

Sim, eu era minoritária em várias questões, e a Câmara decide pela maioria. Por exemplo, em relação ao tráfico de entorpecentes: eu aplicava o que está no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas, que permite redução de pena desde que o réu seja primário, com bons antecedentes e sem envolvimento com o crime organizado. Meus colegas nunca me acompanhavam, ou seja, não aplicavam esse dispositivo. Outra coisa comum era eu aplicar o princípio da bagatela para furtos de bens considerados de menor valor, o que afasta o crime, mas eu era minoritária, ou seja, o processo prosseguia. Eu não estava fazendo nada de extraordinário ou libertário. Trata-se de algo permitido pela lei e já adotado pelo STF.

Isso indica conservadorismo por parte do tribunal?

Ser conservador, do ponto de vista penal, é favorecer o aprisionamento massivo em detrimento de normas criadas com alternativas a ele. Uma pesquisa revelou, por exemplo, que o TJ-SP não aplica liberdade provisória ou cumprimento de pena em regime semiaberto ou aberto para tráfico de drogas, o que está previsto na lei.

E qual é o papel do juiz criminal?

A nossa Constituição e vários tratados internacionais têm previsões sobre o tratamento dos presos relacionadas à dignidade humana. O papel do juiz é ser o garantidor desses direitos fundamentais.

Fernanda Mena

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