Julgamento de Kenarik Boujikian escancara a seletividade e o machismo do Judiciário brasileiro: CNJ vai confirmar condenação absurda?, por Conceição Lemes

01 de agosto, 2017

Em maio de 2017, a juíza Kenarik Boujikian visitou a prisão feminina de Mato Grosso do Sul. São cerca de 30 mulheres por cela. A da foto tem 4 andares de beliche e é aí que passam a maior parte do tempo

(Viomundo, 01/08/2017 – acesse no site de origem)

Nesta terça-feira (01/08), organizações de direitos humanos, juristas comprometidos com o Estado de Direito, as garantias judiciais fundamentais e as liberdades individuais e cidadãos democratas de todo o País estarão com a atenção voltada para a plenária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Mais precisamente para o julgamento da juíza Kenarik Boujikian, reconhecida e respeitada no meio jurídico e na sociedade.

É a terceira vez que o processo entra em pauta. A primeira foi em 13 de junho. A segunda, em 27 de junho, quando foi postergado para agosto.

Em 2016, a pedido do desembargador Amaro Thomé Filho, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), Kenarik foi submetida a processo disciplinar, porque soltou 11 réus que estavam provisoriamente presos por tempo superior às penas fixadas em suas sentenças.

Na prática, portanto, já haviam cumprido as suas penas.

Por incrível que pareça, o processo foi julgado procedente. Por maioria de votos, o TJ-SP aplicou-lhe a pena de censura.

A magistrada recorreu ao CNJ da decisão, pedindo a sua revisão e anulação.

E é isso que está hoje em julgamento.

Detalhe: a mesma situação dos 11 presos libertados por Kenarik já havia detectada  pelo próprio CNJ, quando realizou mutirão no TJ-SP, em 2012. Em seu relatório,  alertou:

“Durante o mutirão, foram detectados alguns casos recorrentes que causam prisões indevidas, como os que abaixo são relacionados:

5.5.1. Extinção de pena pelo seu cumprimento sem que a apelação do Ministério Público tenha sido julgada pelo Tribunal de Justiça… Nessa situação, alguns juízes resistem em expedir alvará de soltura, sob o argumento de que a pena poderá ser majorada em sede de recurso, sem perceberem, no entanto, que a prisão da pessoa resta sem amparo legal, a despeito da matéria se encontrar sumulada pelo STF (Súmula 716).

O relator é o conselheiro Carlos Levenhagen, desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais desde 2008.

IRONIAS EM DOSE DUPLA

Ironicamente, nos últimos 60 dias, dois casos exemplares sentenciados pela juíza Kenarik foram beneficiados pela Justiça.

Um deles é famoso. O do ex-médico Roger Abdelmassih, 73 anos, que, em 4 de julho, conseguiu de vez autorização da Justiça para cumprir o restante da pena em casa.

A justificativa é de que o ex-queridinho de 99% da mídia e das celebridades brasileiras tem problemas de saúde.

O segundo caso  envolve 10 policiais militares.

Em 2005, a juíza Kenarik condenou os dez PMs por torturarem durante cinco horas seguidas Roberto Carlos dos Santos e Natacha Ribeiro dos Santos.

O processo ficou seis anos no TJ-SP e outros seis no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Assim, em 1º de junho de 2017, foi declarada a prescrição do crime.

E os dez estavam soltos.

QUADRILÁTERO 

Os casos da juíza Kenarik, do médico-monstro Roger Abdelmassih, dos 10 PMs torturadores e dos 11 pobres que ela soltou escancaram o machismo e a seletividade do Judiciário. Na veia.

Consideremos esse quadrilátero.

Em uma das pontas, claro, Kenarik, uma das fundadoras da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Uma juíza extremante ética e competente, com 28 anos de carreira impecável.

Certamente foi punida por:

1) Ser mulher. Duvido que o desembargador que pediu o processo contra Kenarik ousaria o mesmo contra um juiz homem;

2) Preocupar-se com presos desvalidos que já haviam cumprido suas penas;

3) Ser progressista numa casa francamente conservadora.

Nas outras três pontas, temos:

Policiais militares, que sistematicamente são poupados da sanção por crimes contra a vida e a integridade física.

Aqueles que são, por outro lado, os clientes costumeiros do direito penal, que uma juíza ousou colocar em liberdade por excesso de tempo na prisão.

Um homem branco, rico e médico que, em tese, pelo Juramento de Hipócrates, deveria cuidar das pessoas. Mas fez o contrário.

De 1995 a 2008, estuprou 56 pacientes na sua badalada clínica de fertilização in vitro, em São Paulo, e, ainda, manipulou indevidamente material genético de várias dessas mulheres, brincando com a vida e a morte.

Em novembro de 2010, Roger foi condenado a 278 anos de prisão pelos ataques sexuais.

Mas, de lá para cá, ele foi beneficiado por recursos bem-sucedidos à Justiça, para os quais certamente influíram conivência institucional com crimes sexuais contra a mulher e a rede de relações com gente poderosa.

De cara, ele não foi preso logo após a condenação devido a um habeas corpus do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que lhe concedeu o direito de responder em liberdade.

Por conta disso, em janeiro de 2011  ele fugiu do Brasil, e só foi preso novamente em 2014, no Paraguai.

De maio a 23 de junho de 2017,  quando foi solto inicialmente, por decisão liminar, Roger esteve internado em um hospital particular da cidade de Taubaté, também no interior paulista.

Recentemente, como dissemos acima, ele teve prisão domiciliar concedida, por problemas de saúde.

Mas eu pergunto: se ele fosse pobre, como a quase totalidade dos encarcerados brasileiros, lhe seria, agora, dado o direito de cumprir o restante da pena em casa?

SELETIVIDADE 

“Em tese, as decisões judiciais ou em processos administrativos e disciplinares aplicam a lei, que é abstrata, a um caso concreto determinado”, explica advogada Marina Lacerda, que atua na área de direitos humanos.

“Infelizmente, o resultado geral das ações acaba revelando a prevalência das relações materiais de poder no sistema de justiça e de segurança pública“ observa Marina.

“Daí por que o público preferencial do direito penal é composto de pessoas negras e pobres. Do mesmo modo, há relatos persistentes de que vítimas de violência doméstica são desencorajadas a denunciar”.

Há exceções, mas a regra é essa.

“Assim, enquanto Kenarik foi punida pelo TJ/SP por ter dado liberdade a 11 presos que cumpriam pena provisoriamente há mais tempo do que deveriam, certos magistrados — famosos por descumprirem a lei — seguem sem maiores inconvenientes em suas atividades”, põe o dedo na ferida Marina Lacerda.

SOLIDARIEDADE

Tanto que, durante toda essa caminhada, Kenarik teve muita solidariedade, muita mesmo.

De integrantes da comunidade jurídica, organizações de direitos humanos a cidadãos comuns, há bastante gente indignada com a injusta condenação.

Por exemplo, em nota, a organização de DDH – Instituto de Defesa aos Direitos Humanos manifestou “irrestrita solidariedade” à desembargadora, “que está sendo alvo de um injusto processo administrativo disciplinar por ter expedido alvarás de soltura de dez réus que estavam presos preventivamente há mais tempo do que a pena fixada em suas sentenças”.

Afirma ainda nota:

“Kenarik é exemplo de magistrada comprometida com os direitos humanos e com a luta contra a expansão do Estado Penal, motivo pelo qual nos colocamos na torcida para que tão despropositado processo disciplinar se mostre infrutífero”

Também em nota, o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), afirmou esperar “que a corregedoria decida pela improcedência da representação em sua decisão o importante papel que a desembargadora Kenarik desempenha no Tribunal em busca da efetivação de Direitos das pessoas mais vulneráveis e dos valores mais nobres da Justiça”.

Também por meio de notas públicas e ofícios, Kenarik recebeu apoios de muitas outras entidades, dentre as quais:

AASP- Associação dos Advogados de São Paulo;

IBCCRIM- Instituto Brasileiro de Ciências Criminais;

Pastoral Carcerária Nacional-CNBB;

IDDD- Instituto de Defesa do Direito de Defesa, a ANADEF – Associação Nacional dos Defensores Públicos;

Comitê Tortura, AACRIMESC -Associação dos Advogados Criminalista do Estado de Santa Catarina;

JusDh – Articulação Justiça e Direitos Humanos; Terra de Direitos; Fundo Brasil de Direitos Humanos;

SOF ; 

Marcha Mundial de Mulheres;

Centro Gaspar de Direitos Humanos, Coletivo Transforma MP; 

IBDPP Instituo Brasileiro de Direito Processual Penal- Bahia;

Comitê Nacional de Combate à Tortura.

E ainda, de personalidades, como Dalmo de Abreu Dallari, Fábio Konder Comparato, Paulo Sérgio Pinheiro, Romi Bencke e Leonardo Boff.

Após a punição, foram tantas as mensagens de apoio e perguntas sobre os desdobramentos que, em 15 de fevereiro deste ano, Kenarik publicou em sua página no Facebook um post para os amigos que não são da área do Direito, com as principais questões (na íntegra ao final deste post).

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, também se manifestou contra a pena de censura aplicada a juíza Kenarik pelo TJ-SP.

Num parecer minucioso, bastante didático e claro, Janot defendeu a revisão da pena e pediu o seu arquivamento.

A íntegra – são 44 páginas – está ao final deste post.

Mas nós separamos alguns trechos importantes. Vale a pena conferi-los:

Em março de 2017, os advogados da juíza Kenarik , o dr. Celso Antonio  Bandeira de Mello e Tamasauskas e Bottini Advogados pediram liminar para ela participar do concurso de promoção.

Afinal, a principal consequência da punição de censura é não poder ser promovida por 1 ano.

A liminar só seria concedida, se estivessem presentes dois requisitos: perigo da demora ( periculum in mora) e fumaça do bom direito (fumus boni iuris).

Levenhagen deu a liminar para paralisar os concursos de promoção de desembargador até a decisão sobre o processo de Kenarik.

Deste modo, ninguém pode ser promovido enquanto ele durar.

E agora, como Levenhagen vai votar?

KENARIK EXPLICA O SEU CASO PARA QUEM NÃO É DO DIREITO

15 de fevereiro de 2017

Amig@s do face que não são do direito me fizeram perguntas. Demorei a responder, desculpas, mas vá lá.

O que é esta CENSURA que te aplicaram? Vc não vai mais poder falar? 

Não é isso. Quando uma pessoa que exerce um cargo público é acusada de cometer uma falta disciplinar, abre-se um processo e no final tem duas soluções: ou o processo é arquivado (porque os julgadores entendem que não foi cometida a falta) ou aplica-se uma sanção, uma pena.

Para os juízes, pode ser: advertência; censura; remoção compulsória; disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço; aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço; demissão.

No meu caso a pena foi de censura. Isto significa que na minha ficha funcional vai ter este registro.

Ou seja, que julgaram que eu cometi uma falta disciplinar. Outra consequência é que fica barrada minha promoção, pelo critério do merecimento, pelo período de um ano.

Qual foi a acusação? Colegialidade? 

No Tribunal, tem coisas que só podem ser resolvidas em conjunto, mas tem coisas que podem ser decididas sozinhas, seja em matéria criminal, seja em civil.

Num primeiro momento expedi os alvarás de soltura clausulados monocraticamente , ou seja, sozinha.

Eu tenho certeza que nestes casos, eu poderia e, mais, deveria, ter decidido na primeira oportunidade.

Mas mesmo decidindo sozinha, numa decisão de cautela, depois, todos os casos foram julgados pelo colegiado.

Explica o que aconteceu…

Então, eu trabalhei quase 25 anos em vara criminal. Agora estou no Tribunal. Em 2014 eu estava trabalhando na seção criminal (atualmente estou no civil).

Nos casos que eu vi, no processo, que o tempo da pena que o juiz fixou na sentença já tinha passado e que não tinha a informação de soltura, por cautela, eu determinei a expedição de soltura clausulado (clausulado quer dizer que se a pessoa tem outro motivo para estar preso – como uma outra condenação ou outra prisão preventiva, ele vai continuar preso).

Isto acontece?

Vi que aconteceu nestes casos. Inclusive quando o CNJ fez mutirão em São Paulo, constou do relatório: “A pena findou em …. e pende, ainda, de julgamento apelação interposta pelo Ministério Público”.

Nessa situação, alguns juízes resistem em expedir alvará de soltura, sob o argumento de que a pena poderá ser majorada em sede de recurso, sem perceberem, no entanto, que a prisão da pessoa resta sem amparo legal, a despeito da matéria se encontrar sumulada pelo STF (Súmula 716).

Neste mutirão várias alvarás foram expedidos para resolver esta situação. Este relatório do CNJ serve para que os juizes fiquem atentos para as situações que eles apontam.

Significa que nos seus processos os indivíduos estavam efetivamente presos?

Não significa necessariamente isto. Significa que eu tinha a informação da prisão (normalmente prisão em flagrante), mas não tinha a informação da soltura, no processo ( folhas de antecedentes criminais nem sempre dão todas as informações na data da consulta, todo mundo que trabalha com processo criminal sabe disso).

Para não correr o risco de deixar uma pessoa presa indevidamente o que eu tinha que fazer era expedir o alvará de soltura clausulado, que é o meio mais eficaz para solucionar a questão, sem demora. Caso o indivíduo já estivesse solto e fosse só uma questão de informação, maravilha!

Caso estivesse preso (e não importa a forma desta prisão, tem várias: em regime fechado, semi-aberto, aberto, em livramento condicional), seria solto.

Eu acho que agir com cautela era minha obrigação. Não tem coisa pior para pessoa e para a sociedade, deixar alguém preso além da conta.

A liberdade é uma coisa tão, mas tão importante, que a Constituição Federal tem um monte de regras sobre a prisão e a liberdade.

E não vamos esquecer que a Constituição é a “lei” mais importante de um país, a quem tudo e todos devem obediência.

Bem, pra completar, sempre defendi a independência judicial como garantia dos direitos humanos. Independência judicial não serve para o juiz, mas para os jurisdicionados.

Para que o juiz possa decidir independentemente de pressões externas e internas e deste modo não colocar em risco os direitos do cidadão.

Adoro o que eu faço!

Se tiverem alguma dúvida, podem mandar inbox que devagar eu respondo.

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