Quem foi Virgínia Bicudo: Mulher, negra e pioneira na psicanálise, mas invisível no Brasil

16 de abril, 2017

Neta de escrava alforriada, ela foi a primeira mulher a fazer análise na América Latina e disseminou esse saber pelo País.

Entre o esquecimento, o desconhecimento e a invisibilidade, uma grande história brasileira praticamente desaparece. Com ela, some também um referencial de vida e de conquistas. Bem aqui, no País que faz vista grossa ao racismo e às desigualdades, uma mulher negra preencheu a própria trajetória com pioneirismos.

(Huffpost Brasil, 16/04/2017 – acesse no site de origem)

Virgínia Leone Bicudo (1910-2003), paulistana, filha de uma imigrante italiana branca e de um brasileiro negro, neta de uma escrava alforriada, foi a primeira mulher a fazer análise na América Latina.

Foi a primeira pessoa a escrever uma tese sobre relações raciais no Brasil, inaugurando, na academia, o debate sobre racismo. Foi também a primeira psicanalista não-médica no País. Tantas credenciais desta psicanalista e socióloga e, no entanto, seu nome, seu protagonismo e sua história se tornaram invisíveis a muitos brasileiros.

“Àqueles que não sabiam desse fato e o acham estarrecedor, comungamos do mesmo sentimento de estranhamento: como nunca soubemos disso? Como não nos falaram antes?”, questiona a psicanalista Ana Paula Musatti Braga, doutora em psicologia clínica pela USP (Universidade de São Paulo), em seu artigo Pelas trilhas de Virgínia Bicudo: psicanálise e relações raciais em São Paulo, publicado na revista Lacuna.

“No meu modo de ver, nunca houve interesse na divulgação do trabalho dela. Eu diria que poucos negros conhecem o que a Virgínia fez”, afirma ao HuffPost Brasil a psicanalista Isildinha Baptista Nogueira, doutora em Psicologia pela USP e pesquisadora, desde a década de 1990, dos efeitos do racismo no psiquismo dos negros.

Quando era estudante, nunca soube da Virgínia. Não há essa informação nas escolas de psicanálise, nem de psicologia, nem de psicologia social. Se você for a uma livraria, não vai encontrar os textos dela – Isildinha Baptista Nogueira, em entrevista ao HuffPost Brasil

Ela quis conhecer a origem da rejeição que sofria

A história pessoal de Virgínia, marcada pela percepção do preconceito de cor e pelo sofrimento derivado dessa discriminação, incidiu sobre as escolhas profissionais dela ao se tornar pesquisadora e definir, como objeto de estudo, as relações raciais, observa Ana Paula Braga em seu artigo.

“Eu me interessei muito cedo por esse lado social. Não foi por acaso que procurei psicanálise e sociologia. Veja bem o que fiz: eu fui buscar defesas científicas para o íntimo, o psíquico, para conciliar a pessoa de dentro com a de fora. Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E, na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a história”, diz Virgínia, em uma entrevista de 1998.

Mais cedo, em 1983, ela havia revelado o primeiro e doloroso contato com o racismo:

“Eu fui criada fechada em casa. Quando saí, foi para ir à escola, e foi quando, pela primeira vez, a criançada começou: ‘negrinha, negrinha’. Quando eu estava em casa, eu nunca tinha ouvido. Então, eu levei um susto.”

Ela disseminou a psicanálise

Até chegar à psicanálise, Virgínia foi buscar respostas na sociologia. Em 1935, já graduada como educadora sanitária, matriculou-se na Escola de Sociologia e Política: “Eu queria me aliviar de sofrer. Imaginava que a causa do meu sofrimento fossem problemas sociais, culturais”, diz, em um depoimento de 1995.

No segundo ano do curso, conheceu a psicologia social e, por consequência, as ideias de inconsciente de Sigmund Freud. Foi o suficiente para despertar o desejo de se tornar psicanalista. Assim, chegou ao médico e professor Durval Marcondes, que lhe recomendou procurar a psicanalista judia alemã Adelheid Koch, vinda ao Brasil para escapar do nazismo. “Eu fui a primeira pessoa que usou o divã da Doutora Koch”, diz em uma entrevista de 1995.

Marcondes havia fundado a Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBPSP) em 1927. Virgínia se juntou a ele em sua luta para desenvolver este saber em São Paulo e se ligou à SBPSP por toda sua vida, lembra ao HuffPost Brasil a psicanalista Maria Ângela Gomes Moretzsohn, também membro da SBPSP.

“Virgínia participou ativamente da vida societária, como psicanalista e, muitas vezes, em cargos de direção, como secretária, tesoureira, professora, supervisora, analista didata e diretora do Instituto Durval Marcondes em várias gestões.”

Em 1970, a pioneira fundou o Grupo Psicanalítico de Brasília e, mais tarde, o Instituto de Psicanálise da capital federal.

“É incontestável que o papel de Virgínia Bicudo na implantação e desenvolvimento da psicanálise no Brasil foi fundamental para chegarmos ao ponto em que estamos hoje”, afirma Moretzsohn.

Ela aproximou a psicanálise das pessoas

“Virgínia, extrovertida, bem falante, logo se tornou uma comunicadora eficiente das ideias nas quais acreditava”, exalta Moretzsohn. Enquanto a psicanálise era implementada no Brasil, os grandes veículos de comunicação a divulgavam de uma forma acessível aos leigos, e Virgínia teve papel fundamental nessa democratização do conhecimento.

De acordo com Moretzsohn, em um programa na rádio Excelsior chamado Nosso Mundo Mental, Virgínia interpretava situações envolvendo temas como inconsciente, inveja, agressividade, ciúmes, amor e ódio. Tudo em forma de radioteatro.

“Em 1954, desenvolvi um programa de divulgação de princípios de higiene mental segundo a psicanálise, através da dramatização de textos que eu compunha, e que eram levados ao ar semanalmente”, explicou Virgínia, segundo o pesquisador Jorge Luís Ferreira Abraão.

O programa deu origem uma coluna dominical no Jornal da Manhã, com o mesmo nome. Em 1956, os textos se transformaram no livro Nosso Mundo Mental, de autoria de Virgínia Bicudo.

Ela demonstrou que o racismo adoece

Entre os muitos feitos da psicanalista, o estudo da questão racial e dos conflitos existentes entre brancos e negros deu início um olhar urgente e necessário para o efeitos do racismo. A dissertação do mestrado na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, nomeada Estudo de Atitudes Raciais de pretos e mulatos em São Paulo, trouxe uma inovadora investigação a partir de pais e mães de alunos de escolas públicas em bairros populares e de classe média de São Paulo. Com o depoimento de 31 pessoas, ela mostrou que, mesmo quando diminuem as diferenças sociais, o preconceito de cor permanece.

“Virgínia conseguiu fazer uma leitura que fosse não só psicanalítica; foi política, sociológica, antropológica”, enaltece Isildinha Baptista Nogueira Nogueira. Segundo a psicanalista, é preciso levar em consideração, na clínica, as questões raciais trazidas pelos pacientes.

“É preciso entender que o racismo adoece e esse é o perigo que nós corremos, pois existe uma aparente inclusão do negro na sociedade, mas esse adoecer psíquico é muito mais eficiente do que a segregação e a discriminação.”

Nogueira, que realiza terapia em grupo com pacientes negros, diz perceber como eles são fragilizados pelo racismo.

“O fortalecimento dessas pessoas pode vir do fato de serem escutadas analiticamente e do fato de entenderem que não estão solitárias, principalmente nos medos, na depressão, nos ataques de pânico.”

A pesquisadora lembra que Virgínia entendia, por meio do trabalho dela, que os efeitos do racismo passavam de geração para geração. “Foram 300 anos de escravidão. Esse passado é de todos.”

Ela enfrentou resistência e difamação

Em seus 92 anos de vida, Virgínia desbravou ambientes predominantemente brancos e masculinos. Como lembra Braga, até a primeira metade do século 20, a produção acadêmica das ciências sociais vinha praticamente de homens brancos, alguns negros e pobres; algumas mulheres, somente brancas. Porém, a ideologia de branqueamento no Brasil, como se refere o pesquisador Marcos Chor, ficou evidente. No documento como professora de higiene Mental e psicanálise, Virgínia é identificada como “branca”.

Não foi a primeira vez que faltou reconhecimento da obra e da pessoa que Virgínia era. Em 1955, a Unesco financiou o maior projeto de pesquisa sobre relações sociais no Brasil. Conhecido como Unesco-Anhembi, o projeto derrubou a tese de que tínhamos uma democracia racial no País. A pesquisa de Virgínia Bicudo, pioneira e fundamental para o tema, foi publicada como um apêndice do estudo, e completamente excluída da segunda edição, em 1959, como lamenta Braga em seu artigo.

O golpe mais cruel, porém, veio da saúde mental. A psicanalista foi essencial para que a SBPSP aceitasse entre seus membros analistas leigos, ou seja, não médicos. Porém, durante o 1º Congresso Latino-Americano de Saúde Mental, em 1954, ela foi alvo de hostilidades por ser uma psicanalista não-médica:

“Eu estava sentada e todos os médicos de pé, todos gritando: ‘Absurdo! Psicanalistas não médicos!’ Foi horrível! Olha que eu quase me suicidei por isso. Você ouvir outras pessoas dizendo: ‘Você é charlatã!’ Ah! Você não fica de pé! Você vai pra casa e quer morrer”, revela em uma entrevista à SBPSP.

Na época, médicos chegaram a distribuir panfletos com os dizeres “Se eres neurótico e queres se tornar psicótico, procura a doutora Virgínia Bicudo. Se trate com a doutora Virgínia Bicudo.”

Ao transitar da dor do preconceito para a investigação das próprias origens, Virgínia evidenciou sua força e determinação, reforça Moretzsohn:

“Não é difícil imaginar que a vida de Virgínia, em instituições nas quais era praticamente inexistente a presença de pessoas negras, não era fácil. Ela voltou a abordar a questão racial em momentos diferentes de sua vida, se referindo sempre a ela como uma grande experiência na esfera da dor.”

Amanda Mont’Alvão Veloso

 

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