‘Racismo determina quem vai viver ou morrer na nossa sociedade’, diz pesquisadora

06 de junho, 2018

O Atlas da Violência 2018, divulgado nesta terça-feira (5) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) traça um panorama da violência no Brasil num intervalo de dez anos – 2006 a 2016. Entre os dados divulgados, há as mortes de jovens, o índice geral de homicídios e, ainda, as mortes de mulheres, além da violência sexual.

(Correio 24 Horas, 06/06/2018 – acesse no site de origem)

A advogada, ativista de Direitos Humanos e professora do curso de Direito da Uneb Anhamona de Brito conversou com o CORREIO sobre as violência contra jovens. Anhamona também é doutoranda em Difusão do Conhecimento pela Ufba, foi superintendente de Direitos Humanos do Estado da Bahia, secretária de Políticas de Ações Afirmativas do governo federal, ouvidora geral da Defensoria Pública da Bahia e presidente do Colégio Nacional das Ouvidorias das Defensorias Públicas do Brasil.

Quais os motivos podem ser apontados para a vulnerabilidade maior desses jovens negros, especialmente do sexo masculino?

Não podemos errar na indicação da causa que sustenta os demais fatores vinculados à elevação endêmica da morte dos jovens negros no Brasil e na Bahia: o racismo. O professor cubano-jamaicano Carlos Moore, doutor em etnologia pela Universidade de Paris, na obra intitulada “Racismo e sociedade” demonstra como a gestão monopolista dos recursos das sociedades do século XXI é fundada no elemento racial. A lógica racista de nossas sociedades extrapola a esfera do sentimento e alcança a dimensão de estruturante do sistema de normas, do próprio funcionamento do Estado, além do gozo dos direitos e oportunidades em diferentes cenas sociais.

Com isso, quero dizer que o ódio especificamente dirigido à juventude negra e masculina faz parte de uma seleção perversa que nega a este grupo dignidade, justiça social e, assina sua vida como mecanismo de subjugação e controle social, o qual blinda privilégios a uma minoria, os não-negros das elites, os quais sempre detiveram acesso ampliado aos bens sociais.

A juventude negra masculina sofre com a ausência de acesso aos bens sociais – saúde, educação, lazer, trabalho e emprego, etc. Além disso, recebe nos peitos o impacto negativo do ódio historicamente estabelecido contra suas características fenotípicas. Ao saírem nas ruas, são os potenciais criminosos, aqueles a quem a sociedade fomentam o medo e, por consequência, o ódio. Sem acesso aos bens sociais, temidos e odiados, tornam-se alvos preferenciais sob a chancela, quando não a ação direta, do próprio Estado.

Em dez anos, a senhora destacaria alguma mudança nas políticas de enfrentamento à violência que poderia influenciar no aumento?

Nos idos de 2007/2008, havia uma expectativa e empenho social – sobretudo dos segmentos sociais que trabalham com a questão da violência através de uma perspectiva de emancipação de sujeitos historicamente negados – que conseguiríamos reverter à visão dos poderes públicos, sobretudo dos governos estaduais e suas polícias, e da população em geral no que diz respeito às medidas mais eficazes para o enfrentamento da violência. Infelizmente, apesar dos elevados investimentos (tempo, dinheiro e empenho político), não conseguimos emplacar o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) a partir do que ele tinha de melhor: as propostas de parceria com a sociedade civil visando à pacificação social por um viés de diálogo e garantia de direitos. Ao invés disso, as medidas para aquisição de armas, viaturas e vantagens remuneratória às policias foram as que mais ganharam aporte no repasse de orçamento aos Estados.

Também não podemos desconsiderar que o crime organizado age, em nosso país, com células que direcionam a prioridade no campo político, a partir de lobby, expresso ou velado, nas casas legislativas, inclusive no Congresso Nacional. Com isso, políticas importantes para repensarmos a elevação da violência no país, sobretudo a violência letal, a exemplo da descriminalização do uso das drogas e a regulação do uso e da venda de drogas, são escanteadas. Preconceito somente? Longe disso, estratégia para lucro com o comércio ilegal de armas, de drogas e outros crimes a eles atrelados.

Os jovens negros também são as vítimas mais frequentes da violência policial. Como os governos estadual e federal devem enfrentar o problema do racismo institucional?

A juventude brasileira nos apontou, ao longo dos últimos anos, os caminhos para garantir dignidade, felicidade, direito à vida e oportunidade a este segmento, com ênfase para a juventude negra. No campo normativo, o protagonismo juvenil, num cenário de maior permeabilidade no campo da política, contribuiu com a aprovação do Estatuto da Juventude, Lei Federal nº 12.852/2013, pouco conhecida e quase intocada. Os governos não priorizam recursos orçamentários em políticas públicas para este segmento populacional, o que é um erro estratégico, se a intenção verdadeiramente for a de reverter o assassinato de jovens negros pelas polícias.

Esta Lei, o Estatuto da Igualdade Racial e tantas outras voltadas à garantia de direitos de populações subalternizadas não “pegaram” porque não foram criadas para dar certo. Pelo menos se levarmos em conta o interesse dos detentores do poder, os quais se beneficiam com a repartição racializada dos bens e vantagens sociais. Mais do que reconhecermos o racismo como fator estruturante, para o seu enfrentamento é fundamental a nossa presença (população negra) nos espaços de poder, na definição dos recursos públicos e da prioridade na política. Do contrário, não passaremos do estágio de elaborar leis, sem que elas tenham qualquer efetividade.

Outro aspecto destacado pelo estudo é o crescimento do número de mortes de mulheres. Em dez anos, a taxa de homicídios de mulheres na Bahia aumentou 70%. Que razões poderiam explicar este aumento?

A elevação do número de morte de mulheres precisa ser vista a partir da desagregação de informações. De acordo com o Atlas da Violência 2018, o aumento da taxa de mortes incidiu sobre as mulheres negras, no 15,4%; enquanto que, em se tratando das mulheres não negras, houve um decréscimo de 8% no mesmo decênio. Isso comprova como o racismo determina quem vai viver ou morrer em nossa sociedade.

No mais, a elevação do ódio no Brasil como medida de contenção das pessoas e grupos de pessoas que alcançaram, ao longo da última década, visibilidade e protagonismo, deve ser considerada como elemento a impulsionar o feminicídio. Ademais, mesmo tendo uma base normativa das mais avançadas no campo do enfrentamento da violência contra mulher – a exemplo da Lei Maria da Penha e a do Feminicídio (que o categoriza como crime hediondo) – podemos considerar a cultura sexista como fator de encorajamento destas práticas, que vai desde a objetificação da mulher à certeza da impunidade em hipóteses de violência.

Como o feminicídio deve ser enfrentado pela enfrentado pelas autoridades? Quais os principais desafios para reduzir estes índices?

A categorização das mortes de mulheres enquanto feminicídios – desde o inquérito policial, alcançando as denúncias e as sentenças nas ações penais – é, ao meu ver, um elemento indispensável para garantir que a sociedade reconheça o caráter lesivo deste tipo penal. Afinal, esta qualificadora amplia a pena.

Mas não se trata apenas de punição, do contrário, o Brasil seria uma sociedade das mais pacíficas do planeta. É importante fortalecermos a perspectiva educacional, (re)introduzindo o estudo de gênero e sexualidades nas escolas que, na essência, trata-se da valorização da diferença e garantia dos direitos humanos para todas as pessoas, fundamental para uma vida social sem violência e com dignidade.

Thais Borges

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