A Chacina de Cajazeiras e o silêncio sobre a morte violenta de mulheres, por Wânia Pasinato

31 de janeiro, 2018

Na madrugada de 27 de janeiro a violência bateu mais um recorde no Ceará. Quatorze pessoas morreram e outras ficaram feridas em um ataque homicida que durou 10 minutos, com tiros disparados a esmo em um salão de forró na periferia de Fortaleza. Por suas proporções, a Chacina de Cajazeiras tem ocupado as páginas dos jornais locais e provocou a atenção da mídia nacional e internacional.

Enquanto o governo do estado e o governo federal discutem de quem é a responsabilidade pelo crescimento do crime organizado, pesquisadores e especialistas procuram enquadrar a chacina no conjunto de explicações para a escalada de violência que vem se espalhando pelo estado. A expansão das facções criminosas, a alteração no mapa da circulação de drogas no estado e na região e mudanças no perfil da composição das facções são alguns dos fatores utilizados para explicar o crescimento da violência sem precedentes.

Mas a Chacina de Cajazeiras tem uma característica que é diferencial: entre as 14 vítimas fatais estão oito mulheres. Há outras quatro entre as vítimas feridas. São mulheres jovens, com idades entre 15 e 38 anos, pobres e moradoras de bairro periférico. Nada indica que estariam envolvidas com o crime organizado.

Também não há indicativos de que este tenha sido um crime baseado no gênero. Se fosse um crime com motivação de gênero, então as mortes poderiam ser classificadas como feminicídios por menosprezo e discriminação pela condição do sexo feminino. Mas o fato de não haver motivação de gênero não torna esses crimes menos graves e nem diminui a responsabilidade do Estado em agir com a devida diligência e reparar direitos para as vítimas indiretas – por exemplo, filhos e filhas sobreviventes desse crime.

Apesar dessa característica, as explicações correntes entre especialistas em criminalidade e segurança pública indicam que a chacina se encaixa no padrão da violência que mata jovens negros do sexo masculino. Feito esse encaixe, as análises podem seguir os rumos conhecidos das críticas às políticas de segurança pública e aos problemas decorrentes da criminalização das drogas. Críticas com as quais concordo, mas que não oferecem novos ângulos sobre o problema e não incluem as mulheres nessa análise. Consequentemente, as vítimas mulheres permanecem invisibilizadas.

Da parte do movimento de mulheres é triste ver que a comoção que temos a cada mulher morta pelas mãos dos parceiros afetivos não é estendida às mulheres mortas pela criminalidade ‘comum’. No movimento que grita por ‘nenhuma a menos’, o silêncio sobre as mulheres mortas em Cajazeiras é sufocante e mostra como nossas reações são seletivas também. Estamos tão capturadas por um discurso homogeneizador sobre a violência contra as mulheres, baseado em um ‘essencialismo’ que explica a condição de gênero ‘pelo fato de serem mulheres’, que nos tornamos insensíveis aos crimes que ocorrem nas bordas externas das fórmulas padronizadas que descrevem a desigualdade de gênero.

O mais preocupante é que este diferencial na Chacina de Cajazeiras não é fato isolado. Em 2017 os homicídios bateram recorde no Ceará, com 5.134 mortes. Um aumento de 50% em relação a 2016. No mesmo período a violência contra as mulheres também cresceu e chegou a 349 mortes, com crescimento de 71% em relação a 2016. Sessenta vítimas eram meninas e adolescentes. Sabemos pouco sobre essas mulheres ou as circunstâncias de suas mortes, mas quando falamos sobre o aumento da violência contra as mulheres apenas cobramos as autoridades no enfrentamento da violência doméstica e familiar e não nos sensibilizamos para pensar que as marcas de gênero estão presentes também no movimento da criminalidade. Mais uma vez as mulheres e meninas que morrem nesses contextos permanecem invisibilizadas.

Lendo sobre a Chacina de Cajazeiras penso na tese de doutorado da pesquisadora Ana Paula Portella – “Como morre uma mulher? Configurações da violência letal contra mulheres em Pernambuco” (UFPE, 2014) –, que analisa e descreve esses movimentos e nos provoca com a necessidade de refletir sobre essa invisibilidade, deslocando nosso olhar para as brechas entre os estudos sobre crime e violência e aqueles sobre violência contra as mulheres e gênero, com coragem para revisar nossos referenciais teóricos e reconstruir nossas análises trazendo novas contribuições a ambos os campos de estudos e das políticas públicas.

Wânia Pasinato é socióloga e atualmente é assessora do USP Mulheres. 

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