Após 2 anos da lei, feminicídio ainda esbarra no machismo, diz juíza

11 de março, 2017

A falha do poder público na coleta de dados capazes de classificar determinados homicídios contra mulheres não mais como apenas “crimes passionais”, associado ao machismo, são os principais empecilhos para que a Lei do Feminicídio (13.104/2015), que completou dois anos esta semana, emplaque em todo o país. A análise é de uma juíza que lida com esse tipo de assunto rotineiramente no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) –a chefe da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica, Teresa Cristina Cabral.

(UOL, 11/03/2017 – acesse no site de origem)

De acordo com a magistrada, ainda são poucos os tribunais, pelo país, que classificam o assassinato de uma mulher pela própria condição de gênero dela como feminicídio, e não homicídio. O próprio TJ paulista só passou a aceitar a nova tipificação penal de novembro para cá –ou seja, há quatro meses, já que nem sempre os inquéritos policiais, as perícias ou as denúncias do Ministério Público consideravam esse tipo de crime.

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Os próprios dados sobre assassinatos de mulheres –e não “feminicídios” –no país não são atuais: o levantamento mais recente, do Mapa da Violência, é de 2015, mas com informações de órgãos governamentais de 2013. Segundo o documento, porém, o Brasil é o quinto país onde há mais assassinatos de mulheres em todo o mundo –uma taxa de 4,8 homicídios de mulheres a cada 100 mil. Em 2010, o mesmo estudo, desenvolvido pela Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) com apoio de entidades como a ONU (Organização das Nações Unidas) e a OMS (Organização Mundial da Saúde), colocava o país em sétimo no ranking mundial desses crimes.

“Investigação precisa ter perspectiva de gênero”

No último dia 9, o TJ-SP lançou a campanha de mídia “Isso tem nome: Feminicídio” para reforçar a necessidade de se classificar os homicídios que ocorrem contra mulher pelo fato de ela ser mulher. No mesmo dia, o tribunal assinou o termo de adesão às Diretrizes Nacionais do Feminicídio, elaboradas pela ONU –que visa a contribuir para explicitar as razões de gênero, em cada caso, a partir da análise das circunstâncias do crime, das características do agressor e da vítima e do histórico de violência.

“O feminicídio tem um aspecto bastante diferenciado dos homicídios e de outros crimes. Para que se consiga a responsabilização do agressor, e, em última análise, da erradicação do fenômeno, precisamos ter um apego a regras técnicas que nos levem a conduzir o processo de forma mais efetiva e concreta”, disse a juíza. “E essas diretrizes dão uma série de dicas em relação às circunstâncias desse crime –desde a investigação dele, precisa ter a especificidade de ter uma perspectiva de gênero.”

Para a magistrada, não apenas no judiciário, mas todo o sistema de justiça –também delegacias de polícia, defensoria e advocacia, destacou –precisa considerar a nova realidade de análise. Mesmo assim, ela reconhece que, em um país onde a tradição patriarcal ainda é forte, a nova tipificação esbarra também em elementos culturais e educacionais para ser considerada.

Entre as críticas correntes entre vozes contrárias a se classificar homicídio contra mulheres como feminicídio, por exemplo, está a de que não há classificação equivalente para os homens.

“É preciso formar profissionais com a perspectiva de gênero para eles entenderem o feminicídio, darem a tipificação penal dele e compreenderem o que é o assassinato de mulheres porque são mulheres”, explicou, para completar: “Quem afirma que não há uma nomenclatura específica para os assassinatos de homens desconhece a realidade de mortes violentas de mulheres, que têm um diferencial: as mulheres que morrem porque são mulheres padecem de uma coisificação, uma objetificação e um pertencimento que criam uma vulnerabilidade que exige essa diferenciação”, atestou.

Brasil é machista “e não tem tradição de coleta de dados”

A magistrada admite que há falha na coleta de dados das vítimas e que, por essa razão, os que existem “nem sempre correspondem à realidade”. “Em termos de Brasil, não temos tradição de coleta de dados, e essa é uma falha que se está tentando mudar há algum tempo. Como é uma lei relativamente recente, e como não havia um campo específico a ele na movimentação judiciária dos processos, no sistema do TJ, isso também afetou –e mesmo assim os boletins de ocorrência, os inquéritos e as denúncias em razão de morte violenta, na maior parte das vezes, chega só como homicídio. É preciso mudar toda essa consciência e fazer com que os casos cheguem como feminicídio.”

Dados do mundo sobre violência contra a mulher falam por si, argumenta juíza

Na avaliação da juíza, porém, aspectos culturais também são obstáculos para que a lei tenha uma maior efetividade.

“O machismo também prejudica a análise e a investigação do feminicídio, à medida que menospreza o fenômeno e o hostiliza com perguntas como: ‘Mas por que feminicídio?’. Tem quem ache que machismo não existe –e sim, ele acontece em qualquer esfera da sociedade, até no judiciário”, disse.

Se ela própria já passou por alguma situação de machismo ao falar sobre o feminicídio? “Sim, há sempre essa dificuldade. O que costumo fazer, quando isso acontece, é seguir atuando e mostrando o que precisa ser feito –mas estudando, acima de tudo, porque o conhecimento técnico é o que ajuda a rebater as afirmações. Os dados no mundo é que dizem que a violência contra a mulher é muito grande, não apenas eu que digo”, salientou. “Com certeza me considero uma feminista –e, ao contrário do que possam dizer, toda pessoa que defende a igualdade de direitos entre homens e mulheres é feminista”, reforçou.

Por Janaina Garcia/ UOL/SP

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