Ataques sexuais no transporte em SP já ocorriam, só não são mais invisíveis, diz juíza

30 de setembro, 2017

“A impressão é que esses casos não existiam, e agora começaram a existir. Mas essa não é uma percepção real: quem anda de transporte público já sabia que eles aconteciam com alguma frequência há bastante tempo –só que agora não são mais invisíveis à sociedade”.

(UOL, 30/09/2017 – acesse no site de origem)

A opinião é da juíza paulista Tatiane Moreira de Lima, do Fórum Regional do Butantã (zona oeste de São Paulo). Os casos a que ela se refere são os diversos ataques sexuais a passageiras de ônibus que começaram a ganhar destaque na imprensa de um mês para cá –mesmo período em que está vigente uma campanha que visa justamente a combater o assédio dentro dos transportes. Pelos cálculos da juíza, a partir de números da SPTrans (São Paulo Transportes), desde 29 de agosto, foram ao menos dez ocorrências do tipo apenas em ônibus do sistema.

Autora e coordenadora da iniciativa, a magistrada participava do evento de lançamento do programa, na sede do TJ, dia 29 de agosto, enquanto era tornado público que uma mulher fora atacada por um rapaz em um ônibus na avenida Paulista. À luz do dia, e em uma das avenidas mais movimentadas da capital paulista, ele foi preso em flagrante por estupro depois de ejacular no pescoço da vítima.

Diego Ferreira de Novais é preso novamente em SP, em 2 de setembro, quatro dias depois de ser solto após ejacular em uma passageira de ônibus em SP (Foto: Marcelo Gonçalves/Sigmapress/Estadão Conteúdo)

O caso ganhou projeção nacional depois que o agressor, Diego Ferreira de Novais, 27 anos e ao menos 17 boletins de ocorrência registrados por assédio sexual ou estupro, foi solto em uma audiência de custódia pelo juiz José Eugênio do Amaral. O magistrado entendeu que o gesto, sem imprimir violência, tampouco coação à vítima, se configurava como contravenção penal passível de multa, e não estupro. Novais atacou outra vítima quatro dias depois, de novo na região da Paulista, foi autuado em flagrante e denunciado pelo crime de estupro. Teve então sua prisão preventiva decretada.

Desde o caso do auxiliar de serviços gerais com ficha policial extensa, outros relatos de ataques sexuais pipocaram em todas as regiões da cidade e em outras cidades do Estado. Só na última quarta (27), por exemplo, a capital registrou em um intervalo de pouco mais de quatro horas três ataques do tipo a passageiras de ônibus. Em um deles, outro caso de ejaculação em um ônibus no Tatuapé, a Justiça novamente entendeu que o ato, apesar de “repugnante”, não configurava crime e colocou o agressor, Evandro Quessada da Silva, 26, em liberdade.

Evandro Quessada da Silva, 26, ao deixar ontem o 30º DP rumo à audiência de custódia que o libertou, nessa quarta-feira (27), em SP (Foto: Marcelo Chello/Estadão Conteúdo)

Falta de tipificação penal ainda estimula agressores, diz juíza

Para Tatiane Moreira de Lima, a dificuldade em tipificar penalmente esses ataques como algo mais grave que a contravenção penal, e menos grave que o estupro, ainda é o que trava novas denúncias e estimula os ataques.

“Esses casos já existiam, mas havia uma ‘invisibilização’ deles. As mulheres tinham vergonha de denunciar porque seriam culpabilizadas por aquele abuso e julgadas pela roupa, pelo horário de estar no transporte, porque esse é um crime em que a palavra da vítima ainda é muito questionada”, afirmou. “Mas a gente já sabia que havia essa lacuna da tipificação penal – com delegados, juízes e promotores entendendo que esses ataques era importunação ofensiva, e não crime. Enquadrar esse agressor como estuprador é muito grave –ele próprio vai sofrer uma série de estigmas e violências com isso”.

“Justiça é dar a pena devida a cada caso. E falta realmente esse tipo penal em que um ataque sexual como o do sujeito que ejacula em uma mulher no transporte não seja nem um crime hediondo, nem uma contravenção. É preciso que se leve em consideração que a mulher em geral está sozinha, vulnerável, confinada, sem chance de escapar. Isso é uma condição de vulnerabilidade que precisa ser levada em conta”, completou.

Capacitação contra ataques

Segunda a juíza, uma forma de lidar com essa brecha deixada pela lei foi treinar e capacitar cerca de mil funcionários das empresas de transporte para que dessem acolhimento à vítima e soubessem como lidar com o agressor e os passageiros uma vez constatado o ataque.

Tanto na prisão do rapaz que ejaculou na vítima da Paulista quando na do homem que ejaculou na passageira do Tatuapé esta semana, por exemplo, passageiros acionaram motorista e cobrador ao constarem a situação. Acionada, a Polícia Militar conseguiu chegar a tempo de prendê-los –ainda que, na situação da zona leste, passageiros tenham também agredido o agressor.

“O fato de esse agressor ser solto logo depois não significa que o que ele fez saiu de graça, pois ele vai responder processo penal e pode ser condenado, muito embora, em muitos casos, à pena de multa. Mas na sensibilização com os mais de mil funcionários colocamos a importância de se garantir a integridade física desse abusador para que a Justiça atue sobre ele, e não o cidadão queira fazer justiça. Caso contrário, o abusador sai de autor dos fatos para a situação de vítima.”

Os números desse primeiro mês de campanha ainda não foram fechados pelas empresas públicas e privadas de transporte, mas a magistrada admitiu que, se no metrô e nos trens não houve mudança substancial dos registros, nesse período, em ônibus a situação foi diferente.

“Nossa grande preocupação sempre foram os ônibus, porque achávamos que os passageiros ou os funcionários não iam querer pará-los se constatado o ataque. No fim, foi o meio onde se revelou que mais tem ocorrido ou noticiado isso, foi onde, de fato, a notificação desses casos estourou. A postura que as pessoas e os agentes das empresas tomaram nesses casos nos surpreenderam positivamente”, diz.

“Seja porque as companhias de transporte sequer tivessem antes um registro interno para tratar dessa questão do abuso –e agora SPTrans nos passou pelo menos dez casos desde 29 de agosto –, seja porque a mulher ficava calada, paralisada, com medo, ou vergonha, e seguia a vida adiante. Nem isso está acontecendo mais, e nem as pessoas em volta estão mais se omitindo”, constatou.

De acordo com a juíza, os agressores flagrados em casos de abuso sexual no transporte ao longo do mês de setembro serão os primeiros a participar de um curso de reflexão sobre práticas de machismo que começa mês que vem, em dois finais de semana, ministrado pelo sociólogo Sérgio Barbosa. Com técnicas de teatro e psicodrama, a ideia é que o agressor reveja atitudes ao ser colocado, ele próprio, em situações desconfortáveis. A ação servirá como opção de pena alternativa a casos de não reincidentes e será aplicado no Fórum Criminal da Barra Funda.

“A proposta é que esses homens tenham a possibilidade de refletirem sobre essa o machismo –é isso que vai mudar essa cultura, e não, ficar preso. Isso já é feito com grupos de autores de violência doméstica nos quais a reincidência caiu de 77% para 6%”, pondera. “Por que não controlar seus instintos animalescos e respeitar o corpo daquela mulher? Acredito que é possível, sim, mudar essa cultura e entender que o transporte é público, mas o corpo da mulher, não.”

Juíza foi atacada e feita refém em 2016

Atuando com vítimas de violência cometida por parceiros ou familiares há seis anos, a magistrada ganhou destaque em março do ano passado ao ser, ela própria, agredida durante uma audiência judicial. Na ocasião, ela foi atacada e feita refém durante meia hora por um homem que tentou queimá-la. O agressor, o vendedor Alfredo José dos Santos, foi condenado no mês passado a 20 anos de prisão pelo crime contra a juíza.

Janaina Garcia

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