Como a publicação de dados pode contribuir na luta contra o feminicídio

08 de março, 2018

(Revista Galileu, 08/03/2018 – acesse no site de origem)

No final de 2017, quando 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública foi lançado e o Piauí registrou a maior taxa de feminicídios do país, a delegada Eugênia Villa comemorou. Não que o número elevado fosse motivo de comemoração. A razão do entusiasmo de Villa era o de que pela primeira vez esse tipo de crime aparecia.

Subsecretária de Segurança Pública do Estado, ela dera ordens expressas para que todo assassinato de mulher fosse informado diretamente em seu celular. Quando a lei que tipifica o crime entrou em vigor, em março de 2015, ela já havia criado o Núcleo Investigativo do Feminicídio para estudar as ocorrências.

Pela lei de 2015, o assassinato de uma mulher por motivo de gênero é um tipo de assassinato qualificado chamado feminicídio. Não engloba todas as mulheres mortas, mas as que sofreram violência doméstica ou familiar ou foram vitimadas por serem mulheres, coisa que ainda não está clara para a maioria dos policiais. Ler os sinais do crime é uma nova fronteira na produção de estatísticas necessárias para a criação de políticas públicas.

“Os números mostram que as mulheres estão sendo assassinadas porque são mulheres. Porque mantêm relações. Quer dizer que há um déficit demográfico”, afirma Villa. Em três anos, seu esforço foi avaliar todos as ocorrências do Estado e ensinar às equipes os critérios da ONU para enquadrar o crime. “É preciso treinar o olhar e que ele tenha base teórica”, diz ela, que trabalha numa tese de doutorado para analisar o discurso presente nesses delitos. Adaptar a polícia inclui mudanças nos inquéritos policiais.

A cena do crime ganha peso maior, e a investigação trabalha com uma “timeline” detalhada, como chama Villa, para comparar a sequência de fatos na vida da vítima e do assassino, que na maioria das vezes têm relação entre si. Dessa forma, características conhecidas mas pouco computadas como a escalada da violência podem se tornar visíveis ao governo.

Outra diferença está na relação com o Instituto Médico Legal (IML), que deve fornecer informações ignoradas em crimes comuns. “Começamos detalhando melhor o laudo cadavérico. Se a polícia não pergunta, o técnico não pode responder. Então, perguntamos mais: foram atingidas partes do corpo relacionadas à libido, como o bico dos seios? Se a vítima estava grávida, o assassino é o pai? Se houve sexo, houve também sexo oral? É preciso colher material biológico para isso, coisa que não necessariamente se fazia antes” explica a delegada.

O protocolo estadual passa hoje pela sua primeira revisão. “Todos os dias pego os casos e vou tipificar. Existe a violência simbólica, de matar e jogar no lixo, existe a territorialização do corpo, de colocar uma coleira de cachorro ou cortar os seios. É preciso detalhar a análise dos crimes para que o feminicídio não caia na vala comum do ‘matou por ódio’, ‘matou por misoginia’.”

O esforço de Villa, no entanto, ainda não ecoa em todo o país. Dez Estados não ofereceram nenhum dado para o Anuário, que colocou o Piauí em primeiro lugar no porcentual de feminicídios, com um índice de 57%. O problema começa na investigação, que oferece inquéritos falhos ao judiciário, também despreparado para julgar a violência contra a mulher.

No Rio, por exemplo, 430 mulheres foram assassinadas em 2016, mas apenas 16 desses casos foram qualificados como feminicídio. “Existe pouco caso no Brasil para esse tipo de episódio, que não é visto como grave”, diz a juíza Adriana Mello, presidente do Fórum Permanente de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Mello classificou os dados do Rio como uma “persistente cegueira estatal”.

Se hoje o desafio é catalogar o feminicídio, antes era enxergar a própria violência que o precede. “Sempre houve uma tendência de desqualificar tentativas de homicídio quando a vítima sobrevive, tratando-as como lesão corporal grave, sem a intenção de matar.” Entre os casos emblemáticos que já chegaram à sua mesa, estão os de uma mulher com 70% do corpo queimado por querosene ateado pelo companheiro, e o de outra que levou sete facadas do marido. Em ambos casos, os colegas de Mello não viram como tentativas de homicídio.

Em 2017, ela estreou a metodologia ativa nos cursos que coordena na EMERJ, com debate de casos reais., São turmas de educação judicial, que começaram a pipocar no país dois anos atrás e incluem discussões que vão desde o conceito básico de patriarcado a tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil mas ignorados pelas cortes brasileiras. “O conhecimento teórico o juiz já tem. Ele precisa é despertar para a perspectiva de gênero.”

Silvia Lisboa e Letícia González

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