#UmaPorUma: É da conta de todos nós

29 de abril, 2018

Por Ciara Carvalho

O corpo na caçamba.
O corpo na caçamba do lixo.
O corpo de Rosineide Silva de Almeida, 54 anos, descartado na caçamba do lixo. Mãos amarradas por um pedaço de corda amarela, blusa levantada, seios nus. Ninguém soube. Ninguém viu. Era só um corpo, misturado aos restos, esquecido e invisível.

(NE10, 29/04/2018 – acesse no site de origem)

O corpo de Ivonete Maria dos Santos, 45, dilacerado por 45 facadas, jogado na calçada de casa, muita gente viu. E não fez nada. Preferiu filmar. E espalhar na internet as imagens do marido embriagado, tragando, golpe a golpe, a existência daquela mulher. Era o corpo-espetáculo, banalizado pela omissão nossa de cada dia.

A mulher, resumida a um corpo inerte, esquecido e banalizado. Não só Rosineide nem Ivonete. Mas Sibelly, Lourdes, Larissa, Julianna. E por serem tantas, quase uma por dia, decidimos contar. Durante um ano, um coletivo de jornalistas mulheres do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação (SJCC) vai acompanhar de perto a rotina de uma matança que, sim, faz parte da violência urbana. Mas vai além. É fruto amargo do machismo. Forjada no sentimento de posse que o homem julga deter sobre elas e sobre o corpo delas. A face derradeira de um poder que coloca nas mãos desse homem o controle extremo sobre a mulher: o da vida e da morte.

Leia mais: Uma por uma: mães falam da dor de ter filhas vítimas de feminicídio (TV Jornal, 30/04/2018)

O projeto multimídia #UmaPorUma (umaporuma.com.br), que estreia hoje e será veiculado em todas as plataformas do sistema, vai contar, sem exceção, as mulheres assassinadas em Pernambuco no ano de 2018. Não apenas contar. Mas dizer que basta. Compreender por que estão morrendo, buscar na polícia as respostas de quem as matou. Acompanhar a conclusão do inquérito, registrar a denúncia do Ministério Público, cobrar o julgamento dos acusados e a punição do crime. Contar para não esquecer.

Os números machucam e impressionam. Pelas constâncias e brutalidade com que esses corpos são destruídos. Nos três primeiros meses de 2018, 77 mulheres foram mortas em Pernambuco de forma violenta. O levantamento feito diariamente pelo grupo de jornalistas do SJCC, com base nas notícias publicadas na imprensa, é confrontado com as estatísticas oficiais. A pedido do projeto, uma vez por mês, a Secretaria de Defesa Social nomeia e entrega a relação completa dos homicídios de mulheres registrados pela Polícia Civil. À pesquisa, gestada nas redações, se juntam as histórias daquelas vítimas cuja dor não saiu sequer no jornal. Não é só um número. Cada caso conta.

E, no esforço de contar, para além da estatística fria e cruel, é essencial investigar as motivações dos crimes. De todas, a que mais choca, a que mais fere, é justamente aquela que só existe porque a vítima é uma mulher. Não são poucos os casos de feminicídio em Pernambuco. De janeiro a março, 17 mulheres foram assassinadas em função da condição de gênero no Estado. Elas representam a assustadora marca de 22% do total dos homicídios ocorridos no primeiro trimestre. São corpos que não estão sozinhos, isolados na cena do crime. A despeito das histórias únicas que carregam, representam mais do que tragédias individuais. Em todas as vidas interrompidas dessas mulheres sempre o mesmo recado manchado de sangue: vocês não são donas de seus corpos.

Elizabete tentou afastar a filha do relacionamento abusivo. Não conseguiu (Foto: Reprodução)

A MORTE, UM POUCO A CADA DIA

Sibelly Carla de Lima Souza, 14, pensou que, com ela, seria diferente. O relacionamento cheio de idas e vindas com José Jorge Possidônio Ferreira, 27, o ajudante de pedreiro por quem a adolescente se apaixonou perdidamente aos 12 anos, era uma morte anunciada. Agressões físicas, explosões de posse, declarações apaixonadas, pedidos de perdão. Ela não sabia, mas morria um pouco a cada dia. “Eu cansei de ir lá, na casa em que eles moravam, para tentar trazê-la de volta. Chegamos a brigar, senti que estava perdendo a minha filha”, conta Elizabete de Lima, 36. A mãe, ela própria vítima de um relacionamento abusivo que durou oito anos, estava certa. 2018 mal havia chegado, e nas primeiras horas do ano-novo, o primeiro caso de assassinato de mulher em Pernambuco era um feminicídio.

O corpo de Sibelly Carla de Lima Souza, golpeado por uma faca de serra, só foi encontrado dois dias depois. Sobre a cama da casa modesta, de paredes sem reboco, onde o casal morava, em São Lourenço da Mata, na Região Metropolitana do Recife. Já estava em decomposição. No mês de janeiro, a cena, com trágicas variações, se repetiria em mais sete cantos do Estado. Outras sete mulheres, assim como Sibelly, assassinadas pelo marido, namorado, ex-companheiro. Foi o mês com mais casos de feminicídio do trimestre.

Ao lançar luzes sobre todas as mortes, e não só a dos feminicídios, o projeto #UmaPorUma vai aprofundar as causas, detalhar as circunstâncias, ajudar a construir um caminho no qual a prevenção chegue primeiro. Para tanto, conta com a referendada parceria do Instituto Maria da Penha, sediado em Fortaleza, no Ceará. Os números serão atualizados no site do projeto ao fim de cada mês, com as estatísticas e histórias referentes ao mês anterior. Seguiremos nessa missão até janeiro de 2019.

No esforço de contar todos os casos, escutando os relatos de parentes, vizinhos e amigos, a vulnerabilidade da mulher se revelou uma presença incômoda e determinante. Mesmo quando a morte está ligada ao envolvimento da vítima com a criminalidade, associada quase sempre ao tráfico de drogas. Seja essa relação estabelecida de forma direta ou indireta. Em 26% dos 77 homicídios registrados, a vítima era usuária de droga ou tinha ligação com a venda de entorpecentes. Em outros 14% dos assassinatos, pagou com a vida pelo envolvimento no tráfico de filhos, maridos, vizinhos. Era, em todos os casos, o elo mais fraco.

Não se trata só de vulnerabilidade. Mas, em igual e perversa medida, de uma quase completa invisibilidade. Dos 77 assassinatos, 80% das vítimas com informação declarada sobre escolaridade eram analfabetas ou não chegaram a concluir o ensino fundamental. Eram pardas ou negras quase 60% das mulheres assassinadas. Uma correspondia ao perfil de classe média. Contar, uma por uma, para que se vejam todas. Para que elas existam e deixem de morrer.

Luzinete com a foto da filha e do genro: “Era um casal muito grudado. Ela nunca saia sozinha (Foto: Reprodução)

NÃO. ELE NÃO ERA UM MONSTRO, por MARIANA DANTAS

Por que ele fez isso? Essa é a pergunta que não sai da cabeça dos familiares da gerente de loja Dayanne Joyce Silva Serafim, 25 anos, e do policial José Ailton Francisco da Silva, 36. Para quem os conhecia, os dois aparentavam manter um casamento feliz. Juntos há dez anos, Dayanne e Ailton costumavam trocar carinhos em público, receber amigos em casa nos fins de semana e frequentar as festas das famílias. Na noite do dia 13 de janeiro, Ailton matou a esposa com um tiro na nuca e cometeu suicídio em seguida. Dayanne foi encontrada sem vida no chão da cozinha da residência do casal, no bairro de Jardim Ipiranga, em Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata pernambucana. O corpo de Ailton estava na sala.

Dez anos mais nova que Ailton, Dayanne conheceu o marido ainda adolescente, aos 14 anos de idade. Após 12 meses de namoro, decidiram morar juntos. Ainda não tinham filhos. “Era um casal muito grudado. Ailton fazia questão de levar e buscar minha filha no trabalho, só não ia quando estava de plantão. Dayanne não fazia nada sem ele, até para ir à minha casa ela avisava antes. Quando Ailton não podia ir na hora, chegava depois. Ela nunca saiu sozinha. Os amigos também eram os mesmos, todos casais. Dayanne nunca teve uma amizade só dela, sua amiga mais próxima era a prima, que é da família”, conta a técnica em enfermagem Luzinete Maria da Silva, 41 anos, mãe de Dayanne.

O fato de Dayanne não sair sem o marido e dar sempre satisfação de tudo para Ailton era visto com naturalidade pela mãe. “Eu achava normal porque essa foi uma vida que eles adotaram desde que começaram a namorar. Meu genro também era atencioso com nossa família”, disse.

“Muita gente me diz que Ailton é o assassino da minha filha. Eu sei disso. Dói. Mas ele era uma pessoa boa. A dor de não ter minha filha já é tão grande, que não vou ficar criando mais esse sentimento. Talvez se ele tivesse matado ela e fugido, meu sentimento mudaria. Mas ele morreu também. No enterro dos dois, eu olhava pra ele e me perguntava: por que você fez isso?”
Luzinete Maria da Silva, mãe de Dayanne

Para o psicólogo Tiago Corrêa, que atua no Serviço de Apoio à Mulher Wilma Lessa, do Hospital Agamenon Magalhães, o assassinato de Dayanne causa espanto entre seus familiares talvez porque o comportamento que Ailton demonstrava a parentes e amigos era bem diferente do estereótipo criado pela sociedade para definir um homem agressivo. “Por influência cultural e midiática, as pessoas tendem a achar que todo homem que pratica violência contra a mulher é uma pessoa ruim, ameaçadora, um verdadeiro monstro. Mas não é. Não existem grandes diferenças entre os homens que praticam violência contra as mulheres e os homens rotulados como comuns. A violência está no nosso cotidiano, muito próximo de nós”, explica Tiago Corrêa.

O psicólogo acredita que esse “estereótipo de monstro” acaba corroborando para que atitudes de violência contra a mulher passem despercebidas ou sejam banalizadas. “Por isso é tão importante desmistificar essa visão. Vivemos numa sociedade patriarcal e machista, onde o homem foi educado para ser o provedor da casa. Muitos passam a ter um sentimento de posse sobre a mulher, acham normal controlá-la, não respeitar a privacidade dela, as amizades e o direito de ir e vir.” Mas, para o especialista, não é possível prever nem determinar que o homem que tenha esse tipo de comportamento venha a agredir fisicamente ou matar a mulher no futuro.

“É importante que as mulheres reajam, caso se sintam controladas. O homem precisa entender que esse comportamento também é um ato de violência. Mas se não houver diálogo, é preciso pedir ajuda. E, para isso, muitas mulheres também precisam vencer o medo ou a vergonha de expor o que sofrem”, ressalta o psicólogo.

CONFESSOU, MAS FOI SOLTO PELA JUSTIÇA, por MARIANA DANTAS

Horas depois de ser preso em flagrante, na noite do dia 9 de janeiro, o ex-presidiário José Augusto dos Anjos, 49 anos, confessou ter assassinado a aposentada Neide Santiago, 74. Ele invadiu a residência dela, no bairro da Cabanga, área central do Recife, e a matou a golpes de tesoura. Três perfurações no pescoço e duas no tórax. Teve a prisão decretada no dia seguinte, na audiência de custódia. O caso parecia solucionado e tudo indicava que ele aguardaria o julgamento em regime fechado. Mas o processo se perdeu na burocracia e José Augusto acabou sendo solto no dia 8 de fevereiro. Está em liberdade.

Segundo o delegado responsável pelo caso, Diego Acioli, o inquérito sobre a morte de Neide foi concluído no dia 22 de janeiro, dentro do prazo previsto por lei, e enviado ao Ministério Público, para que fosse encaminhado à Justiça, seguindo os trâmites legais.

De acordo com a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), o inquérito não chegou à 1ª Vara do Júri. O prazo da prisão preventiva teria vencido e, por isso, José Augusto foi liberado. O Ministério Público alegou não ter enviado o documento porque solicitou novas diligências à Polícia Civil e, como o processo já teria sido aberto na Justiça, durante audiência de custódia, quem deveria enviar o pedido ao delegado responsável seria o titular da 1ª Vara do Júri.

“Não recebi nenhum pedido para novas diligências e estou sabendo que o suspeito foi solto agora, conversando com você (repórter do JC). Concluí o inquérito no prazo e a única informação que faltava era o resultado do exame de DNA feito na tesoura que apreendemos na casa de José Ailton. O laudo ainda não estava pronto. Soube depois que o exame constatou que o sangue na tesoura era realmente de Neide e que o IC (Instituto de Criminalista) teria informado ao Ministério Público”, afirma o delegado Diego Acioli.

A reportagem voltou a procurar o Tribunal de Justiça para saber se a 1ª Vara do Júri teria enviado o pedido do Ministério Público à polícia. A assessoria avisou que está colhendo informações sobre o caso e deverá se pronunciar em breve.

No disse-me-disse entre Ministério Público, Polícia Civil e Tribunal de Justiça, o maior beneficiado é o principal suspeito de ter matado Neide e confessado o crime. José Augusto também não é réu primário. Durante a investigação, a polícia descobriu que ele já cumpriu pena no Estado da Bahia por ter matado um homem.

VÍCIO

Querida pelos vizinhos e vista como uma pessoa tranquila, Neide morava no mesmo bairro de José Augusto. A aposentada o conhecia e já o teria aconselhado a livrar-se das drogas. De acordo com o delegado Diego Acioli, dias antes do crime, José Augusto teria pedido a senha e o cartão de crédito da aposentada. A informação foi repassada pelos dois filhos de Neide, que são adultos e não moravam mais com ela. “A vítima disse aos filhos que não atendeu ao pedido. Ao confessar o crime, ele alegou que precisava de dinheiro para comprar mais drogas e por isso invadiu a casa da mulher”, afirma.

O corpo de Neide foi encontrado pelos moradores da rua. Um deles viu José Augusto rondando a casa durante a madrugada e resolveu procurá-la na manhã seguinte. A porta estava aberta e o corpo em cima da cama. A polícia foi chamada e se dirigiu à residência de José Augusto dos Anjos. No local, policiais apreenderam duas camisas e uma tesoura com manchas de sangue. (M.D.)

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