Feminicídio, um crime evitável, editorial da revista Época

25 de agosto, 2017

O ciclo da violência contra a mulher pode ser interrompido se, diante de cada um dos muitos sinais de perigo, houver ações para impedir um desfecho fatal

(Época, 25/08/2017 – acesse no site de origem)

Há no país uma quantidade inaceitável de assassinatos. Nesse universo vergonhoso, uma categoria de crimes exige análise à parte. Trata-se do feminicídio, em que as vítimas são escolhidas por uma única contingência – o gênero. Esse tipo de morte pode acontecer por múltiplas razões aparentes. Despidas as aparências, suas raízes se encontram na noção troglodita de que homens têm direitos sobre mulheres. Outro traço comum a muitos dos casos é que as mortes poderiam ser evitadas. É usual que a vítima sofra violências consecutivas antes de o crime fatal acontecer. O Brasil é um dos países em que mais se matam mulheres. De acordo com dados do Mapa da Violência 2015, a taxa média de homicídios femininos no país é alarmante. O Brasil passou do 7º lugar entre 84 países em 2010, uma posição já ruim, para outra pior ainda, o 5º lugar entre 83 países, em 2013.

Tipificar um assassinato como feminicídio, conforme a lei acrescentada ao Código Penal em 2015, não significa dar à morte de uma mulher mais importância que a de um homem, como querem os críticos desinformados. Os homicídios femininos merecem avaliação à parte porque resultam de uma dinâmica própria. Entre homens jovens, grupo que compõe a maior parte dos assassinos e das vítimas de assassinato no país, os homicídios ocorrem na rua e por obra de desconhecidos. É possível associar tais ocorrências ao crime organizado e a fatores sociais e econômicos diversos. No universo do feminicídio, a previsibilidade é marcante – o que aumenta a revolta diante do problema, mas também deveria animar autoridades a enfrentá-lo.

Esse tipo de assassinato, usualmente, é a etapa final de uma série de ameaças, agressões verbais ou físicas por parte de um conhecido. Como padrão, o crime é premeditado. Dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo compilados pelo jornal Folha de S.Paulo na semana passada mostram que, no estado, 63% desses crimes acontecem dentro de casa. Também na semana passada, em apenas dois dias, chegaram ao conhecimento público ao menos quatro assassinatos de mulheres com características de feminicídio. Celina Moura, Claudia Zerati, Mizaelly Mirelly e Nathalia Aparecida perderam a vida pelas mãos de ex-companheiros ou companheiros atuais, todas no ambiente doméstico.

“Quem não é homem?”, era a pergunta que André Luis Martins Santos repetia ao estrangular Mizaelly Mirelly da Silva, de 22 anos. Santos, de 25, ao depor à polícia, descreveu a cena e disse que discutia com Mizaelly quando ela classificou um novo parceiro como “um homem de verdade”. Seu algoz reagiu – queria consolidar sua autoridade masculina enquanto a enforcava.

Os casos mostram pequenas variações. Há um mês, a musicista Mayara Amaral, de 27 anos, foi morta a marteladas em um motel em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. O caso foi classificado como latrocínio porque os assassinos, Luiz Alberto Barros, de 29 anos, e Ronaldo Olmedo, de 33, levaram um celular, um notebook, um violão e o carro da vítima. Mas as características familiares se repetem: Mayara conhecia Barros e o crime ocorreu num ambiente de intimidade.

A classificação sistemática desses assassinatos como feminicídios contribuirá com o entendimento do problema e a concepção de soluções. Não se trata apenas de criar um novo nome, e sim de uma maneira de tratar estatísticas, procurar padrões, identificar os sinais de perigo, as falhas na prevenção do crime e as brechas na punição dos criminosos. Delimitar o problema contribuirá com um debate mais instruído. “Há outras maneiras de lidar com a violência, levando o tema para os currículos escolares, fazendo campanhas, com espaço nos meios de comunicação para promover um debate cotidiano visando a uma mudança de cultura”, diz a advogada Leila Barsted, diretora da ONG Cepia.

Um debate mais qualificado ajuda a preparar instâncias diversas do poder público – polícia e assistentes sociais, entre outros – para que acolham com a seriedade necessária reclamações de mulheres logo aos primeiros sinais de comportamento ameaçador de companheiros e ex-companheiros. Encontrar agentes do poder público bem preparados, por sua vez, encorajará mulheres a denunciar comportamentos inaceitáveis. A sociedade deixou de tolerar conceitos antiquados como “matou em defesa da honra” e “matou por amor”. Mas a violência contra a mulher segue diluída em expressões como “crime passional”. É hora de chamar o problema por seu nome verdadeiro.

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