Lei Maria da Penha: aonde chegamos e aonde falta chegar, por Ana Freitas

08 de julho, 2016

(Nexo, 08/07/2016) 10 anos depois da criação da lei, a sociedade e o poder público têm mais consciência da desigualdade de gênero; faltam, no entanto, políticas públicas de educação e integração da rede de apoio

Recentemente, a ex-modelo Luiza Brunet revelou em um depoimento ao Ministério Público que sofria agressões físicas do ex-marido, Lírio Parisotto. O caso teve grande repercussão nos meios de comunicação – assim como o estupro coletivo de uma jovem de 17 anos, no Rio, em maio de 2016.

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O destaque à violência contra mulher na mídia é um fenômeno recente. Tem ligação com o ressurgimento do feminismo e a primavera das mulheres, que nos últimos anos aumentaram o interesse da sociedade pelos temas relativos à desigualdade de gênero.

Especialistas ainda tentam entender o que causou o ressurgimento do feminismo. Mas uma pista para explicar o fenômeno pode ser a grande oferta de informação disponível por meio da internet para uma geração inteira de mulheres. Outra, no Brasil, pode ser a criação da Lei Maria da Penha.

Sancionada em 2006, a lei é um dispositivo legal que dá mecanismos e ferramentas para que o Poder Judiciário proteja mulheres que sofrem violência doméstica e puna os agressores.

A criação da lei representa o reconhecimento por parte do poder público  e das instituições sobre a importância do tema, colocou holofotes mais claros na violência doméstica e ajudou a trazer o assunto para o centro do debate público.

Mas a lei Maria da Penha não é só um mecanismo de punição para agressores: ela também determina uma reeducação da sociedade sobre questões de gênero, na intenção de evitar que a cultura da desigualdade de gênero se perpetue. Essa parte da lei, no entanto, quase nunca é colocada em prática.

Lei foi criada a partir de determinação de corte internacional

A lei Maria da Penha é como ficou conhecido o dispositivo legal brasileiro de número 11.340. Trata-se de um conjunto de leis decretado pelo Congresso Nacional e sancionado pela presidência em agosto de 2006, que entrou em vigor em setembro do mesmo ano, e que determina mecanismos para coibir violência doméstica e familiar contra a mulher.

Reivindicações em São Paulo, em maio de 2016, pediam fim da culpabilização da vítima em caso de estupro (Foto: Guilherme Prado/Nexo)

Sua criação foi fruto de uma condenação do Brasil na CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) em consequência do caso de violência sofrido pela enfermeira Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica depois de seguidas tentativas de assassinato pelo marido, com quem viveu 23 anos de violência doméstica.

O ex-marido da Maria da Penha só recebeu punição pelos crimes que cometeu depois de 19 anos de julgamento – e então, passou apenas dois anos preso em regime fechado.

A indignação de Maria da Penha diante da punição desproporcional do marido levou-a a denunciar o caso à CIDH, que condenou o Brasil a criar uma lei mais rígida para casos de violência doméstica e que também contemplasse o ensino de educação de gênero nas escolas.

“A lei é uma ação afirmativa. Foi criada a partir de um reconhecimento de que as relações domésticas entre homens e mulheres são permeadas por uma desigualdade de gênero, e por isso havia necessidade de uma lei que desse condições para romper o ciclo desse tipo de violência.”
Ana Rita de Souza Prata

Coordenadora Auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo

Dez anos depois da criação da lei Maria da Penha, há uma consciência maior do poder público, da mídia e da sociedade tanto sobre a recorrência da violência doméstica contra a mulher no país quanto sobre a necessidade de combatê-la.

Quem diz isso é a defensora pública Ana Rita de Souza Prata, Coordenadora Auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Em entrevista ao Nexo, Prata diz que os últimos dez anos foram marcados por um avanço nessa consciência. “A justiça percebe melhor a existência desse tipo de violência e o quão grave ela é. Nas varas especializadas [em crimes contra a mulher], a demanda é grande – e isso fez as pessoas se darem conta de que não é uma exceção”, analisa.

“A lei foi muito importante para pontuar que a violência contra mulher é uma violação grave de Direitos Humanos e que é preciso ter um compromisso de todo mundo – sociedade, poder público – para combater isso. Vemos o reconhecimento [da questão] não só em varas especializadas, mas questões de gênero vêm sendo consideradas por juízes em outras varas também. E isso é um reconhecimento do nosso trabalho”, diz ela.

Essa conscientização pode ter sido uma das peças que montou o cenário no qual nos encontramos hoje, de uma consciência social generalizada, por parte da mídia e da sociedade, de que há um problema de violência contra a mulher no país que afeta o dia-a-dia, a segurança e a qualidade de vida de metade da população.

A lei é completa; a execução, não

A Lei Maria da Penha não prevê apenas medidas protetivas para as mulheres que sofrem violência doméstica e punição para os agressores. Ela também determina uma integração entre a rede de apoio do poder público nesses casos, a criação de varas especiais para acolher os casos de agressão e até trabalhos de educação e sensibilização para os réus condenados.

No entanto, na prática, essas medidas quase não são aplicadas. “A lei é ótima e entende a violência contra a mulher como um problema complexo, social, não apenas do ponto de vista criminal. E oferece soluções. Mas hoje, o aspecto punitivo é o único que vem sendo aplicado – é o único viés da lei que encontrou espaço na justiça”, critica Ana Prata.

Com a ausência de políticas públicas oficiais de educação de gênero para as crianças e de sensibilização para os agressores, mesmo com a determinação da lei, o poder público falha em criar mecanismos para que a violência contra a mulher deixe de ser epidêmica, estrutural.

A desvantagem do modelo estritamente punitivista, de acordo com Ana Prata, é que o agressor acaba sendo preso e ingressando no sistema carcerário, que oferece poucas possibilidades de recuperação, de educação sobre comportamento social e machismo para os culpados.

Veja quais são as medidas paralelas da Lei Maria da Penha que não são praticadas pelo poder público

  • A criação de juizados especiais para julgar casos de violência doméstica é importante porque determina a existência de juizados de competência híbrida, isto é, que podem julgar casos da esfera criminal – como agressões contra a mulher – e da esfera cível, como questões familiares e de guarda de menores.Em casos de violência doméstica, essas questões estão frequentemente atreladas. E sem um juizado para olhar os casos de maneira completa, as decisões dadas por diferentes juízes podem ser incompatíveis. Hoje, o país tem apenas uma vara de violência contra a mulher de competência híbrida, no Mato Grosso.
  • Discussão sobre gênero nas escolas  é uma demanda que faz parte da decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ela tem origem no entendimento de que a violência contra mulher é causada pelo machismo estrutural na sociedade – e, por isso, é preciso reeducar jovens meninos e meninas para evitar violências do tipo no futuro.No Brasil, a discussão sobre inclusão da educação de gênero tem sofrido resistência por parte dos setores conservadores da sociedade. Essa resistência tem força, especialmente, nas bancadas evangélicas do Congresso Nacional e das assembleias estaduais.

    A introdução da educação sexual e de gênero das escolas voltou a ser defendida recentemente, quando uma jovem de 16 anos foi estuprada por 33 homens no Rio de Janeiro.

  • Atrelada à necessidade de educação sobre gênero, está outra determinação da lei que não é cumprida no país: a sensibilização de agressores condenados através de cursos e grupos de apoio.Poucas decisões judiciais determinam que homens agressores frequentem esse tipo de grupo – e o motivo é que não há iniciativas do poder público para educar os agressores. Em São Paulo, há apenas um grupo do tipo, oferecido de forma voluntária por uma ONG.

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