‘Quando uma mulher é morta, todas as outras são’, diz major baiana que criou a Ronda Maria da Penha

05 de março, 2018

Em entrevista ao G1, Denice Santiago fala sobre trajetória de vida, sororidade e surgimento da operação que virou modelo no país e no mundo.

(G1, 05/03/2018 – acesse no site de origem)

Romper o silêncio e assumir a autonomia de vida a partir da perspectiva da sororidade e prevenção garantidas pela Ronda Maria da Penha.

Sob o comando da major Denice Santiago, a operação de combate à violência contra a mulher, criada na Bahia em 8 de março de 2015, segue esse lema e completa três anos inspirando corporações no Brasil e em Londres, na Inglaterra. São quase duas mil mulheres que agora encontram a possibilidade de enxergar novos caminhos.

Major Denice fala em sororidade para ajudar no combate à violência (Foto: Danutta Rodrigues/G1)

Major Denice fala em sororidade para ajudar no combate à violência (Foto: Danutta Rodrigues/G1)

“Até hoje, já foram 103 homens presos pela Ronda Maria da Penha. Eu costumo dizer que são 103 feminicídios a menos. Quando uma mulher é morta, todas as outras são”

Com discurso firme e feminista, Denice Santiago Santos do Rosário é símbolo da luta contra o machismo estrutural que norteia relações familiares. A responsabilidade com que carrega tantas histórias de mulheres submetidas às mais diversas formas de violência dá vez à mãe de João e esposa de Rafael durante entrevista especial ao G1. Entre uma conversa e outra, a major costura a história pessoal à trajetória profissional que trilha há quase 28 anos na Polícia Militar da Bahia.

A farda imponente não disfarça cada detalhe lilás dentro da sala onde trabalha. A cor usada nos movimentos feministas e na Ronda Maria da Penha ocupa diversos objetos, as viaturas e a estrutura da sede da operação. Em cima da mesa, bonecas negras, miniatura da Mulher Maravilha e uma imagem de Iansã, orixá dos ventos, raios e tempestades.

“Eu sou de áries com ascendente em escorpião. O astrólogo disse que nem o diabo pode. O ariano pode até não estar certo, mas nunca está errado. Sou filha de Iansã, ekedi [cargo feminino de grande valor no candomblé] de templo. É fogo, mas na maioria das vezes eu sou boazinha”, brinca.

Terceira filha de uma família com cinco irmãos, Denice conta que nasceu da junção de um pai trabalhador, de pouca instrução, e uma mãe extremamente forte, como ela define. Sem muitos luxos na infância, o estudo sempre foi a palavra de ordem dentro de casa. A major conta que a primeira grande feminista com quem teve contato foi a mãe.

“Desde pequenininha eu ouvia ‘minha filha, você vai estudar, vai trabalhar, vai comprar sua casa, só depois você vai casar e ter filho, para não depender de homem. Porque mulher não pode depender de homem’. E ela vinha, contava essas histórias diuturnamente, e foi assim que aconteceu”, lembra Denice.

Já a influência do pai foi determinante para o início da carreira como policial, em 1990, quando ingressou na primeira turma de mulheres na corporação da Polícia Militar da Bahia.

“Uma coisa que sempre me incomodou é o cavalheirismo. Eu achava estranho. Por que o homem tinha que puxar a cadeira para a mulher, abrir a porta? Eu sei fazer, eu posso fazer, por que eu tenho que permitir que ele faça isso?”
As perguntas perderam força dentro da corporação, quando o comportamento socialmente aceito e baseado no machismo deu lugar à hierarquia militar. A partir daí, a major conta que percebeu que havia encontrado o lugar onde queria estar.

“Neles [militares] causava um desconforto, mas para mim era bem tranquilo. Eu achava, poxa aqui é o meu lugar, aqui eu posso ser mulher sem precisar ter esses estigmas que o feminino traz”, relembra.

Major Denice entrou na corporação aos 18 anos. Com quase 28 anos de profissão, ela destaca que tem mais tempo de vida dentro da polícia do que fora dela.

“A polícia é um destino pra mim. A polícia foi uma escolha que a vida teve, me deu, e que eu me apaixonei. Então, ser policial para mim é uma realização de vida. E poder ajudar as pessoas sendo policial, para mim, é muito melhor”, orgulha-se.

O filho João, de 16 anos, divide a mãe com outros 28 “filhos” que atuam na Ronda Maria da Penha e as 1.889 “filhas” que são assistidas pela operação. A agenda lotada para o mês de março causa uma mistura de saudade e reclamação, mas ela garante que, fora do trabalho, a prioridade é dar qualidade à família.

“Hoje mesmo eu tenho um cinema certo com meu filho. Vamos assistir Pantera Negra, claro. Vou namorar com meu marido, vou brigar com eles porque eles não arrumaram a casa do jeito que eu quero”, brinca.

Sororidade

Ela acredita que a maior dificuldade para a vítima em romper o ciclo e denunciar as violências que sofre está na relação cultural que esse tipo de agressão tem nas relações sociais.

“É possível, é aceitável socialmente que o marido possa agredir a sua esposa”.

Para ela, a sociedade também erra ao só reconhecer um tipo de violência, que é a física. “Não reconhecemos as outras todas as violências que o artigo 7º da lei traz, que é a moral, a patrimonial, a sexual, e a que eu acredito ser a pior de todas, que é a violência psicológica, que está em todas as outras relações”, afirma.

A major também conta que romper o silêncio significa destruir tudo o que a mulher aprendeu que era “certo” e a sociedade tem grande responsabilidade nessa violência, pois costuma olhar para essa mulher e recriminá-la. Além da questão cultural, existe também a falta de apoio familiar, às vezes a dependência econômica e a dependência emocional.

“A tendência da mulher é se culpar pelas violências”

Para Denice, a sororidade é fundamental para ajudar mulheres vítimas de violência doméstica. “Eu defini uma vez sororidade como quando nós mulheres cuidamos do pedacinho nosso que está na outra. Então, quando a gente se depara com casos de violência é impossível a gente não se envolver”.

ara ela, a empatia e revolta vão dos casos mais “suaves” aos mais densos. “Eu não quero nunca perder essa capacidade de me indignar porque quando a gente deixa de se indignar, a gente naturaliza essa ação. A gente normaliza ela e diz que é natural. E isso não é natural, isso não pode ser normal. Eu me indigno sempre”, destaca.

Essa capacidade de me indignar que me impulsiona, que me dá força para eu continuar trabalhando.

Denice também defende a perspectiva da prevenção com palestras, eventos, visitas à comunidade e o diálogo sobre o fenômeno da violência.

Representatividade

Como boa ouvinte e atendendo aos conselhos dos pais, Denice nunca deixou os estudos de lado e ostenta um currículo invejável. Mestre em Desenvolvimento Territorial e Gestão Social pela Universidade Federal da Bahia, pós-graduada em gestão em direitos humanos pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), a major ainda é graduada em psicologia pela Faculdade da Cidade e em segurança pública pela Academia de Polícia Militar/UNEB. Atualmente, ela estuda sobre Segurança Cidadã.

Além de idealizar e criar a Ronda Maria da Penha, ela também idealizou e fundou o Centro Maria Felipa, que é o núcleo de gênero da Polícia Militar da Bahia, o único do país. [Conheça mais sobre o centro no vídeo acima]

O reconhecimento do trabalho de combate à violência contra a mulher já rendeu diversos prêmios à major e intercâmbios com a polícia metropolitana de Londres, em fevereiro deste ano, e a polícia de Alagoas, na última sexta-feira (2).

Prestes a completar 47 anos, Denice Santiago conta que aprendeu como policial que é preciso olhar para cada mulher vítima de violência com respeito.

“Não julgar, não duvidar da sua fala, acolher ela com respeito, com dignidade, e ela vai olhar com o mesmo respeito e passar a confiar”

Para a major, o combate e o enfrentamento à violência tem que ser construído por dois lados porque o fenômeno da violência é uma construção da sociedade. “E só essa sociedade junta, se entendendo, se ouvindo, e admitindo seus erros, que ela vai conseguir mudar. E, quem sabe, erradicar esse tipo de prática em nossas relações”, sonha.

Danutta Rodrigues

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