Um terço das mães que é vítima de feminicídio deixa ao menos 3 filhos

15 de outubro, 2017

Na maioria das vezes, mulheres assassinadas são mães e têm pelo menos 2 filhos. Dados integram levantamento da Universidade Federal do Ceará que acompanha 10 mil feminicídios registrados em nove Estados da Região Nordeste do Brasil

(O Estado de S. Paulo, 14/10/2017 – acesse no site de origem)

Desde que viu a mãe ser morta a golpes de facada pelo próprio pai há cinco anos, Ana, hoje com 12 anos, e seu irmão Pedro (nomes fictícios), de 6 anos, são criados pelos avós maternos, primeiro no Recife e agora em Camaragibe, no Ceará. “Eu nunca consegui perdoar meu pai e acho que não vou perdoar nunca”, conta a adolescente. A vida dos irmãos retrata a realidade de muitas crianças no Brasil. Em pelo menos dois terços dos casos de feminicídio, a mulher assassinada é mãe. Na maioria das vezes, ela deixa dois filhos e em 34% dos casos, pelo menos três.

Os dados são de um estudo da Universidade Federal do Ceará (UFC), que acompanha um grupo de 10 mil famílias vítimas de violência em nove Estados do Nordeste. O trabalho está sendo ampliado para mais quatro Estados: Rio Grande do Sul, Goiás, Pará e São Paulo.

“Os dados da pesquisa apontam o tamanho do problema que está escondido embaixo do tapete”, afirma o professor José Raimundo Carvalho, da Pós-Graduação em Economia da UFC, que coordena a Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Familiar contra a Mulher. Patrocinado pelo Banco Mundial, com apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres e do Instituto de Estudos Avançados de Toulouse, na França, o diagnóstico tem dados apurados com entrevistas em comunidades onde vivem parentes e/ou vizinhos de vítimas de violência doméstica.

“Esses primeiros dados comprovam o que era uma impressão da Maria da Penha, ou seja, o universo de órfãos, que ela chama de vítimas invisíveis do feminicídio”, diz Carvalho, referindo-se à biofarmacêutica cearense Maria da Penha, que dá nome à Lei 11.340/2006, considerada um marco no combate à violência doméstica no País.

Para Maria da Penha, a pesquisa levanta ainda uma outra preocupação. “Muitas dessas crianças podem estar vivendo em contato com os próprios homicidas”, afirma. Ela tem três filhas, vive em uma cadeira de rodas por causa do ataque que sofreu em 1983, quando foi baleada pelo marido, e dedica parte de seu tempo à ONG que trabalha com os impactos da violência doméstica e contra as mulheres.

Na opinião da advogada Thaís Dantas, do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, a questão deve ser vista “sempre pelo ângulo do que é melhor para a criança”. Assim, não há como simplesmente vedar a convivência delas com pessoas ligadas ao agressor, como os avós paternos ou tios. “Tem de ver cada caso, sempre procurando o que é melhor para aquela criança.”

Dificuldades. Ana e Pedro não têm nenhum contato com o pai ou a família paterna. Tímida, a adolescente conversou com o Estado acompanhada pela avó, Paula (nome fictício), e pela psicóloga que a acompanha há quatro anos. “Eu lembro das brigas. Ele era ciumento, batia na minha mãe, trancava ela em casa. Um dia, estava dormindo e acordei com os gritos dela. Minha mãe estava caída no chão e ele, por cima dela. Foram mais de 20 facadas. Eu fiquei paralisada. Meu irmão não lembra de nada porque era um bebê, mas ele sabe de tudo. Muitas noites eu acordo vendo aquela cena. Nunca vou esquecer”, diz.

Após o crime, Ana começou a enfrentar problemas na escola e a ter dificuldades de se relacionar com outros jovens. O pai foi preso quase dois meses depois do assassinato, na Paraíba. Hoje, aguarda o julgamento em regime semiaberto.

“Esse homem não matou somente minha filha, matou uma família inteira. Depois que ele foi preso, o pai e um dos irmãos dele ficaram nos ameaçando. Tivemos que entrar com uma medida protetiva, mas, mesmo assim, vivemos assustados. Ana tem pesadelos constantes e não consegue formar vínculos de confiança com outras pessoas”, conta a avó Paula.

Foco na criança. A juíza Teresa Cristina Cabral Santana, da 2.ª Vara Criminal de Santo André, que atua na Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência (Comesp), destaca que a Justiça tem preocupação especial com órfãos. “A gente costuma dizer que quem agride a mulher bate na família toda”, diz a magistrada. Para ela, as crianças são vítimas indiretas da violência enquanto há o conflito. “São as crianças que ouvem, participam, sentem o reflexo dessa violência, porque é uma situação multifacetada.” Ela alerta, ainda, para a necessidade de cuidar para que esses filhos, no futuro, não sejam vítimas de agressão ou reproduzam o tipo de comportamento que presenciaram em casa.

Mãe de Eliza Samudio: ‘Sofrimento nunca acaba’

Ele tinha apenas quatro meses quando a mãe, Eliza Samudio, então com 25 anos, desapareceu. Bruninho, hoje com 7 anos, é um menino alegre e ainda não sabe exatamente o que aconteceu com ela. Por determinação da Justiça, a criança está sob os cuidados da avó materna, Sônia de Fátima Moura.

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Sônia diz temer que, no futuro, Bruno lhe tire a guarda concedida pela Justiça (Foto: Marco Miatelo/Estadão)

O caso de Eliza, de junho de 2010, intriga até hoje o País porque seu corpo nunca foi encontrado. É um exemplo do drama adicional da tragédia familiar que ocorre quando a violência vence as relações afetivas e as dores da perda da mãe se abatem sobre os filhos.

Condenado com outros envolvidos na morte de Eliza, o pai de Bruninho, o goleiro Bruno Fernandes, tenta, nos últimos meses, voltar às ruas e ao futebol. Em fevereiro, conseguiu um habeas corpus do Supremo Tribunal Federal (STF), revogado em abril. “O Bruninho é um menino alegre, que eu tento proteger como posso. Quero que ele tenha uma infância feliz”, afirma a avó.

Temor. Sônia diz temer que, no futuro, Bruno lhe tire a guarda concedida pela Justiça. “Eu tenho medo que ele queira tomar a guarda de mim e que a Justiça, por ele ter dinheiro, conceda isso”, diz Sônia. “Ele pode alegar que é seu filho e já pagou pelo erro, mas um assassinato não é só um erro”.

Para a avó de Bruninho, a “Justiça se preocupa muito com os assassinos e pouco com as vítimas e as famílias, que vivem prisioneiras”. “O sofrimento nunca acaba”, lamenta.

Pablo Pereira / colaborou Mônica Bernardes

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