“A vítima de estupro já chega na delegacia com culpa”, comenta defensora pública Ana Rita Souza Prata

31 de maio, 2016

(Carta Capital, 31/05/2016) Para a defensora pública Ana Rita Souza Prata, polícia e peritos reproduzem comportamentos que fazem com que muitas mulheres desistam de denúncias

A cada 11 minutos uma mulher é vítima de estupro no Brasil de acordo com os dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Esse número, porém, que contabiliza os casos que são levados à polícia, corresponde a apenas 10% dos dados copilados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no estudo Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde, que tem como base os dados do Ministério da Saúde.

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A falta de acolhimento num atendimento impregnado da cultura de culpabilização das vítimas afasta as mulheres da Justiça, fazendo com que a maior parte das denúncias não sejam sequer feitas. Depois disso, boletins de ocorrência mal feitos, falta de informação e estrutura precária no atendimento médico engrossam o caldo que impede que a grande maioria dos casos chegue a julgamento.

Para Ana Rita Souza Prata, defensora pública do Estado de São Paulo e coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria, muito poderia ser feito apenas com um atendimento mais humano às vitimas.

Confira nesta entrevista concedida à CartaCapital.

CartaCapitalConsiderando que apenas 10% dos estupros cometidos no Brasil são denunciados, é possível imaginar quantos processos de fato são levados adiante e concluídos?

Ana Rita Souza Prata: É muito difícil mensurar, mas considerando um dado que temos, que é o da violência sexual no âmbito da violência doméstica, apenas 1% dos casos chegam a uma condenação. Muitos casos não são notificados e, dos notificados na polícia, muitos são arquivados e outros muitos não geram inquérito policial.

É importante deixar claro que os estupros são crimes de ação penal pública mediante representação. Isso significa que, para que se instaure o inquérito policial, não basta a vítima dar conhecimento do fato à autoridade policial, não basta a vítima lavrar o boletim de ocorrência. Ela precisa representar o agressor, declarar na delegacia que quer que o agressor seja processado criminalmente. E ela tem um prazo para fazer isso, que é de seis meses a contar da data do fato.

Ela pode fazer o B.O. (boletim de ocorrência) e depois voltar para representar ou pode representar no mesmo momento. Fica a critério da vítima. O que é importante deixar claro é que, se a vítima fizer o B.O., mas não representar dentro do prazo, o B.O. só terá validade para fins de estatística. O agressor nem sequer terá conhecimento de que houve uma denúncia contra ele.

CC: Que motivos levam a um número tão baixo de casos levados adiante dentro do Judiciário, considerando que o número de estupros denunciados já é tão pequeno em relação aos crimes praticados?

ARSP: A gente não vê como ruim a necessidade de representação, pois de certa forma é um respeito à autonomia da mulher, que pode não querer que o caso dela seja levado para a instância da segurança pública ou do Judiciário. Na verdade, o que a gente acha muito ruim é que não seja esclarecido para as vítimas que elas têm que fazer a representação para que o caso seja levado adiante.

Muitas vezes temos notícias de que a mulher é desestimulada a fazer a representação no mesmo momento em que registra o B.O.. Isso faz com que ela deixe para depois. Ficam falando para a vítima pensar melhor, ir para casa e refletir… Isso faz com que ela se sinta desestimulada e acabe desistindo de voltar àquele espaço que é difícil, pois é uma delegacia de polícia.

CC: Além da questão da representação, que outros motivos dificultam a notificação ou, mesmo que haja, que esse processo seja levado adiante?

ARSP: A falta de um atendimento acolhedor na delegacia e no exame de corpo de delito. Nos dois momentos, há questionamento sobre o comportamento da vítima, sobre a roupa que estava usando, se ela se colocou em situação de risco. Isso faz a vítima se questionar e, por algum momento, pensar que ela pode ser responsável pela violência que sofreu.

CC: Então o que se vê na prática é a culpabilização afastando a vítima da busca por assistência e reparação?

ARSP: O contexto do crime deve ser entendido, mas isso é muito diferente de questionar a vida sexual da vítima, questionar a vida pregressa, com uma ideia de desestimular. E isso é muito complicado para uma vítima de violência sexual dentro de toda uma cultura de repreensão da mulher vítima desse tipo de crime, que impede que ela se exponha.

Sempre vem o argumento de que se estivesse em casa não teria passado por isso… Ela já chega com culpa. Uma culpa que vem dessa cultura. E a autoridade policial ou os peritos reproduzem essas falas e esses comportamentos, fazendo com que ela desista. É uma porta que demonstra o que ela vai enfrentar se quiser seguir adiante.

Porque, além da delegacia, ela vai ter que repetir a história para o perito, para o juiz… Isso já traz para ela um pouco do que ela vai ter que enfrentar.

CC: Como seria um atendimento que não fizesse o papel de inibir a denúncia e o prosseguimento dos processos?

ARSP: O ideal seria um atendimento sem culpabilização, sem pré-julgamento, sem dúvidas sobre a palavra da vítima, um atendimento reservado que não exponha essa vítima a uma sala de espera pública. Muitas vezes a mulher está com as roupas rasgadas e tem que ficar lá esperando o atendimento junto de outras pessoas.

Um tipo de atendimento que é possível com a estrutura que se tem hoje. Não precisa pensar na reformulação da estrutura material ou humana do sistema de justiça ou da polícia para que isso aconteça, é possível fazer isso com a estrutura que se tem hoje: é o mínimo de cuidado.

CC: Então é possível dizer que o maior problema é a cultura e como o assunto é tratado pela sociedade do que a falta de treinamento específico para lidar com essas vítimas?

ARSP: Sem dúvida. Essas condutas que desestimulam as vítimas nada mais são do que representações da conduta machista da nossa sociedade. Então, além de profissionais do sistema de polícia ou da Justiça, são pessoas que convivem nessa sociedade que pensa desta forma. Elas trazem todos esses preconceitos e essa naturalização para seu dia a dia e acabam gerando esse tipo de conduta.

CC: Isso existe também nas Delegacias da Mulher?

ARSP: Numa menor escala, mas existe. O que é importante ressaltar é que, mesmo que não existisse, as delegacias da mulher são uma opção limitada. Não existem em muitos locais e, mesmo onde existem, só funcionam em horário comercial.

É muito complicado, porque se uma mulher vítima de violência sexual esperar para registar o boletim de ocorrência, ela acaba perdendo elementos importantes para se desvendar a autoria do crime. O ideal é que ela vá sem tomar banho, para que a perícia possa colher material genético do agressor, por exemplo. Esse tipo de coisa impede que ela espere até a segunda-feira, às 9 da manhã, para procurar a polícia.

CC: Quando uma mulher é vítima de violência sexual ela deve procurar a delegacia ou ela pode procurar primeiro o serviço de saúde?

ARSP – Se a mulher for vítima de uma violência sexual e nessa violência ela sofrer algum lesão, ela pode primeiro buscar um serviço de saúde antes de ir à delegacia.

De acordo com a Lei 12.845, de 2013, esse equipamento de saúde deve atendê-la de forma humanizada, fazer a profilaxia de doenças sexualmente transmissíveis, de gravidez, e também deve colher material genético, se houver.

Isso permite que depois, caso seja o desejo da mulher, seja lavrado o B.O. e seja aberto um processo. O juiz pode pedir ao hospital esse material para que seja feita a perícia para se investigar a autoria do crime.

CC: E ela pode procurar qualquer hospital?

ARSP: A lei fala que é qualquer local, mas a gente sabe que muitos locais não cumprem os procedimentos, principalmente a coleta de material genético, pois muitos não têm onde guardar esse material. E em alguns locais a profilaxia não é feita de forma adequada, porque ela tem que ser feita dentro de um prazo adequado para que tenha o efeito esperado.

Então, apesar de a lei falar que é qualquer equipamento de saúde, o ideal é que ela procure um local de referência em saúde da mulher.

CC: E depois disso, se a vítima quiser levar o caso adiante?

ARSP: Ela tem que ir a uma delegacia. A notificação da saúde nada tem a ver com a esfera da Justiça. A saúde só notifica as autoridades competentes do âmbito de investigação se a vítima for criança, com até 12 anos.

Se a vítima for uma mulher adulta, a notificação que é feita é apenas para fins de estatísticas de saúde. Essa notificação compulsória dos equipamentos de saúde não vai para a polícia, vai para o Ministério da Saúde.

CC: Muito se fala no quanto boletins mal feitos dificultam os processos e a punição de agressores sexuais. Qual a dificuldade que a mulher vítima de estupro pode ter lá na frente por conta de um B.O. inadequado?

ARSP: O que a gente nota nos B.O.s é que eles são muito sucintos, com os fatos relatados de forma superficial. Principalmente nos casos em que não há testemunhas a serem ouvidas, a prova da prática do crime é bastante difícil de ser obtida.

A perícia do exame sexológico às vezes não dá positivo e isso não significa que não houve violência. O que a gente vê são B.O.s muito curtos, sem detalhes, sem as especificidades da situação, e isso faz, por exemplo, que numa outra oitiva da vítima ela entre em contradição, o que é bastante usado na defesa do réu.

O B.O. é muito importante para que o promotor, desde o momento do recebimento do inquérito, quando for fazer a denúncia, consiga entender de fato o que aconteceu.

CC: Dentro de um cenário que já não é favorável às vítimas, agora temos dois Projetos de Lei tramitando no Congresso: um que obriga que a vítima prove que sofreu violência sexual e outro que dificulta o acesso a medicamentos que previnem doenças sexualmente transmissíveis em casos de estupro. Como você avalia esses projetos?

ARSP: Além de entender que essas leis são contrárias a toda a luta pela garantia de direitos das mulheres, entendo que ambas são inconstitucionais.

Primeiro que não cabe à vítima provar a prática de um crime. A vítima num processo criminal é um instrumento de prova. Quem processa o agressor ou qualquer pessoa que pratica um crime é o estado, representado pelo Ministério Público. Então, cabe ao estado provar a prática do crime.

A vítima, ali naquele processo, dará elementos para que o processo avance, pois é do interesse do estado que esse crime seja punido. É isso que se entende no Direito Penal nos termos da Constituição. Qualquer projeto de lei que disponha diferente disso eu entendo como inconstitucional.

Com relação à não concessão de atendimento médico, isso vai da mesma forma contra a Constituição, que fala que a saúde é universal. E saúde não é só a pessoa desprovida de doença, mas também a garantia de prevenção, além do tratamento de doenças já adquiridas.

Dimalice Nunes

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