Violência contra mulheres imigrantes é recorrente e subnotificada no Brasil

21 de dezembro, 2015

(Géssica Brandino/Agência Patrícia Galvão, 17/12/2015) As múltiplas formas de violência que atingem as brasileiras no cotidiano também são vivenciadas por mulheres imigrantes que vivem no País. O silêncio sobre tais violações, entretanto, prepondera entre essas mulheres, seja pela vulnerabilidade e dependência econômica do parceiro, por não falarem o português, por estarem com a documentação irregular, por não encontrarem acolhimento adequado na rede de atendimento ou ainda por não reconhecerem a violência que sofrem.

Na perspectiva de promover a conscientização sobre as particularidades que cercam a questão da violência contra as mulheres imigrantes, o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo colocou o tema em debate no dia 04 de dezembro, durante o ciclo de debates intitulado “Diálogos Feministas”, realizado ao longo dos 16 Dias de Ativismo.

“Há grandes dificuldades que essas mulheres enfrentam ainda hoje. Primeiro, tem a questão da língua, elas não se sentem à vontade e as instituições não estão preparadas para fazer o atendimento. Segundo, muitas vezes, elas estão aqui de forma irregular e, com isso, não acreditam que têm direitos e que podem buscar o sistema de justiça ou qualquer outro serviço. Então, elas acabam deixando de lado e não buscando uma solução para essa violência”, avalia a Defensora Pública e Coordenadora do NUDEM, Ana Paula Meirelles Lewin.

Neste cenário, a subnotificação dos casos de violência contra as mulheres imigrantes e refugiadas é uma realidade que desafia movimentos de mulheres, instituições que trabalham com a temática migratória e órgãos do Sistema de Justiça.

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Diálogos Feministas sobre mulheres imigrantes e tráfico de pessoas. (Da esquerda para direita) Eliza Donda, Gabriela Cunha Ferraz, Vivian Holzhacker e Dalila Figueiredo (Fotos: Géssica Brandino)

Invisibilidade da mulher na migração

A consultora do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, a advogada Vivian Holzhacker, destacou que, apesar das mulheres serem a maioria dos imigrantes que se deslocam na América Latina (52%), até a década de 1970, a migração era tratada como algo exclusivamente masculino. “A mulher era vista como um apêndice, que acompanha o marido, pai ou os filhos, realidade que só começa a mudar nos anos 1990. Mas, ainda hoje, a migração é vista com o olhar masculino, não se fala da mulher”, frisa.

A mesma questão foi ressaltada pela coordenadora do CLADEM/Brasil e assessora técnica da secretaria de assuntos legislativos do Ministério da Justiça, a advogada Gabriela Cunha Ferraz. “Quem mais sofre numa guerra e sobre quem a gente nunca fala são as mulheres. São elas que perdem os filhos, que sofrem o reflexo da perseguição ao marido, que ficam vulneráveis ao estupro e outras formas de violência e são elas que ficam invisibilizadas”, avalia.

Histórico de violência

A história dessas mulheres carrega, em sua maioria, marcas de violência. Vivian Holzhacker relata que muitas mulheres fogem do país de origem para escapar do cenário de violência doméstica, sexual, de um casamento forçado ou da mutilação genital. Algumas enfrentam dificuldades adicionais por conta da restrição de acesso ao passaporte nos países em que o marido é o titular do documento.

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Evento fez parte do ciclo de palestras promovido ao longo dos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher

Gabriela Ferraz, que atuou na equipe dos Médicos Sem Fronteira da República Democrática do Congo ao longo de um ano, testemunhou o impacto da violência sexual naquele país, categorizada como o estupro costumeiro, quando cometido por familiares ou conhecidos, ou o estupro de guerra, quando cometido por grupos armados, principalmente na região leste do país.

“Esse estupro é cometido de outra maneira. É a objetificação completa da mulher, que serve apenas como um instrumento de conquista para a guerra”, relata a coordenadora do CLADEM. Ela cita como exemplo a tropa de soldados ruandeses soropositivos, que estupravam mulheres para que no futuro elas morressem ou fugissem do país, deixando o território livre.

Ao chegar a um novo país, as violências, entretanto, podem continuar. De acordo com a advogada da Missão Paz, Eliza Donda, no Brasil, as mulheres são mais vulneráveis que os homens no processo migratório, em que a aproximação com os brasileiros é, muitas vezes, dificultada. “Às vezes, a comunidade na qual essa mulher está inserida a isola dos brasileiros. Muitas estão no Brasil há anos e não sabem falar o português. A barreira da língua é muito grande por conta desse isolamento”, aponta.

Tráfico para exploração sexual

A violência pode ainda ser perpetrada no trajeto da migração dessas mulheres. Casos de estupro, abandono no meio de locais desertos e sequestro não são raros. A advogada Vivian Holzhacker também viu de perto, quando atuou no atendimento de refugiados na Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, casos de mulheres que, ao tentar escapar da violência, acabaram como “mulas” do tráfico ou aliciadas para fins de exploração sexual.

A presidente da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (ASBRAD), Dalila Figueiredo, relatou as dificuldades existentes para prevenir, combater e punir o tráfico de pessoas, principalmente nas cidades de fronteira e regiões mais remotas do Brasil. “Quando se fala do Brasil profundo, não há uma rede que dialoga, mas uma ou outra pessoa comprometida com aquela questão. No sistema carcerário das regiões de fronteira, muitas vezes, as mulheres indígenas e estrangeiras são discriminadas pelas brasileiras e, por vezes, torturadas”, denuncia.

Segundo a defensora Ana Paula, os casos de tráfico de mulheres que chegam ao conhecimento da Defensoria ainda são poucos. “Elas buscam a Defensoria só depois que já se estabeleceram e estão abrigadas num local específico”, informa.

Rompimento do silêncio

A naturalização da violência pela própria vítima, após anos no ciclo de violência doméstica, é outro fator que corrobora com o silêncio em relação a essas violações. “Elas demoram muito para se identificar enquanto pessoas em situação de violência doméstica e familiar, porque, na maioria das vezes, vêm de países que, como o Brasil, tem uma cultura machista muito naturalizada e, às vezes, não compreendem a situação que vivem como violência. Muitas vezes, só no momento em que vêm trazer o relato de algo muito grave – de violência corporal, sexual ou que atinge os filhos – é que elas se dão conta de um ciclo de violência muito longo”, explica.

O mesmo se repete nos casos das mulheres vítimas de violência sexual, conta a advogada Vivian Holzhacker: “Muitas mulheres que vem para o Brasil foram vítimas de violência sexual e não buscam atendimento médico porque, muitas vezes, isso não existia no país de origem delas. E, mesmo depois de anos, continuam sofrendo com dores e problemas de saúde decorrentes da violência que sofreram”, aponta.

Em São Paulo, a advogada Gabriela Ferraz ressalta que as mulheres imigrantes vítimas de violência sexual devem receber o acompanhamento médico e psicológico no Hospital Pérola Byington, centro especializado na saúde da mulher e em lidar com essas violências. “Essas mulheres chegam aqui ainda com sequelas, Muitas vezes, não conseguem fazer a profilaxia a tempo, mas ainda precisam de tratamento, principalmente o psicológico, para superar o estresse pós-traumático”, frisa.

Escuta e acolhimento de qualidade

As especialistas consideram primordial o papel da escuta qualificada para que a mulher consiga reconhecer o contexto de violência e buscar ajuda. “A escuta qualificada é justamente aquilo que as entidades que trabalham com migrantes propõem: que seja feita uma acolhida com “a” maiúsculo, na qual se ouve a história da pessoa, se olha nos olhos e se sente empatia por aquilo que a pessoa está vivendo. É preciso sensibilizar o poder público para que a escuta seja feita em todos os âmbitos”, destaca Eliza Donda.

Para a advogada, o exemplo bem sucedido de outras mulheres que buscaram a rede de serviços estimula o rompimento do silêncio por outras mulheres. “O círculo de amizade influencia no aumento das denúncias, porque uma mulher vê que a outra conseguiu resultados e a pergunta como ela fez. Assim, elas vão conversando e a quebra do silêncio vai aumentando”, afirma, destacando o papel fundamental que os profissionais da rede de atendimento têm em promover um serviço humanizado e de qualidade.

Nesse sentido, a defensora Ana Paula afirmou que é perceptível o aumento de denúncias nos últimos anos por mulheres imigrantes, especialmente bolivianas, que tem buscado a ajuda do órgão. Em São Paulo, a Defensoria já conta com materiais traduzidos para o inglês e espanhol e com um convênio para fazer o atendimento da população imigrante. A instituição também tem se aproximado da rede de atendimento aos imigrantes na cidade para apresentar os serviços disponíveis e informar sobre o direito ao atendimento.

“A mulher pode buscar a Defensoria Pública independentemente da situação irregular na documentação. Quando ela busca o serviço, não importa o tipo de documento que ela tem. O que vamos buscar é resolver a questão da violência doméstica ou cometida por outras pessoas e a questão da guarda dos filhos, do que ela demandar”, explica a defensora.

Gabriela Ferraz também destaca a necessidade de compreender e respeitar o multiculturalismo trazido pelas imigrantes e pensar em formas de promover o empoderamento feminino dessas mulheres, estimulando a participação em organizações e conselhos decisórios.

Já para a advogada Eliza Donda, o grande desafio que se coloca para imigrantes é o mesmo que para brasileiras: acabar com a cultura de violência e o machismo. “O maior desafio é romper o ciclo do machismo, que vem não só das culturas dos migrantes, mas também dos brasileiros. Romper com isso é essencial para a sobrevivência da humanidade”, destaca.

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