Violência sexual disseminada na Ditadura deve ser lembrada e punida como crime de lesa-humanidade

11 de dezembro, 2014

(Géssica Brandino/ Agência Patrícia Galvão, 11/12/2014) A violência sexual como método de tortura física e psicológica como política de Estado vitimou mulheres e homens durante a Ditadura Militar, constituindo graves violações aos direitos humanos e crimes contra a humanidade. Para elas, entretanto, a crueldade era intensificada pelo fato de serem mulheres. Depoimentos das sobreviventes colocam em evidência os múltiplos métodos usados pelos agentes da repressão:  estupros, humilhação ininterrupta, desnudamento forçado, abortos provocados, separação dos filhos e tortura contra os companheiros e familiares.

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O cenário desumano é detalhado no capítulo “Violência sexual, violência de gênero e violência contra as mulheres e crianças” do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), divulgado ontem (10/12). O texto utilizou como base a definição de “discriminação contra a mulher” da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), definida como toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher dos direitos humanos e liberdades fundamentais.

Lucia Murat, contou em depoimento à CNV em maio ter sido vítima de tortura sexual, e que poderia ter provocado sua própria morte, caso tentasse se proteger. “Eu ficava nua, com o capuz na cabeça, uma corda enrolada no pescoço, passando pelas costas até as mãos, que estavam amarradas atrás da cintura. Enquanto o torturador ficava mexendo nos meus seios, na minha vagina, penetrando com o dedo na vagina, eu ficava impossibilitada de me defender, pois, se eu movimentasse os meus braços para me proteger, eu me enforcava e, instintivamente, eu voltava atrás”.

Com base em testemunhos como o de Lucia junto a investigações do grupo de trabalho “Ditadura e Gênero”, a CNV constatou que a violência sexual praticada por agentes públicos ocorria de forma disseminada,  com registros que coincidem com as primeiras prisões, logo após o golpe de Estado, constituindo instrumento de tortura e violação dos Direitos Humanos.

“Inserida na lógica da tortura e estruturada na hierarquia de gênero e sexualidade, a violência sexual relatada por sobreviventes da ditadura militar constitui abuso de poder não apenas se considerarmos poder como a faculdade ou a possibilidade do agente estatal infligir sofrimento, mas também a permissão (explicita ou não) para fazê-lo. Foi assim que rotineiramente, nos espaços em que a tortura tornou-se um meio de exercício de poder e dominação total, a feminilidade e a masculinidade foram mobilizadas para perpetrar a violência, rompendo todos os limites da dignidade humana”, descreve o texto.

De acordo com o Estatuto de Roma, citado pelo documento, a agressão sexual, escravidão sexual, prostituição, gravidez e esterilização forçadas ou qualquer outra forma de violência sexual de gravidade comparável constituem crimes contra a humanidade.

Práticas como detenção arbitrária e tortura, por meio de choques nos órgãos genitais, golpes nos seios e no estômago para provocar aborto ou afetar a capacidade reprodutiva, introdução de objetos e/ou animais na vagina e/ou ânus e choque elétrico nos genitais foram cometidas contra as mulheres presas em diversos locais: DEIC, DOI-CODI, DOPS, Base Aérea do Galeão, batalhões da Polícia do Exército, Casa da Morte (Petrópolis), Cenimar, CISA, delegacias de polícia, Oban, hospitais militares, presídios e quartéis. A violência sexual nesses locais era empregada como arma.

As mulheres, militantes ou não, incluindo religiosas, eram tidas como merecedoras de violações pelos militares, formados em uma ótica sexista e homofóbica. Para as militantes, porém, a situação se agravava. Contra elas a tortura também era empregada para arrancar delações sobre namorados, maridos e companheiros. Entre os casais presos, era comum que a mulher fosse violentada na frente do parceiro, imobilizado no pau de arara e também vítima de violência.

Márcia Bassetto Paes relatou ao CNV a tortura sofrida quando foi presa com Celso Giovanetti Brambilla pelo Deops/SP, em 28 de abril de 1977. “Na questão da mulher, a coisa ficava pior porque… quer dizer pior, era pior para todo mundo, não tinha melhor para ninguém, né? Mas […] existia uma intenção da humilhação enquanto mulher. Então, o choque na vagina, no ânus, nos mamilos, alicate no mamilo, então… eram as coisas que eles faziam. Muitas vezes, eu fui torturada junto com Celso Brambilla porque a gente sustentou a questão de ser noivo. Eles usaram, obviamente, essa situação, esse vínculo, suposto vínculo, além da militância, que seria um vínculo afetivo também, para tortura”.

A maternidade também era usada como instrumento de desestruturação das mulheres. Ameaças aos filhos recém-nascidos, injeções para cortar o leite das lactantes e separação compulsória das crianças eram frequentes. “Mutilações nos seios privaram mães de amamentar seus bebês. Úteros queimados com choques elétricos tornaram muitas mulheres incapazes de engravidar ou de levar adiante uma gestação”, revela o documento.

Com menos de dois anos de idade, a filha de Eleonora Menicucci de Oliveira, atual ministra chefe da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, então militante, foi ameaçada pelo uso de choques elétricos, por Lourival Gaeta. “Um dia, eles me levaram para um lugar que hoje eu localizo como sendo a sede do Exército, no Ibirapuera. Lá estava a minha filha de um ano e dez meses, só de fralda, no frio. Eles a colocaram na minha frente, gritando, chorando, e ameaçavam dar choque nela. (…) Até depois de sair da cadeia, quase três anos depois, eu convivi com o medo de que a minha filha fosse pega”.

Muitas vítimas fatais da ditadura foram submetidas à violência sexual antes de desaparecer ou de serem assassinadas. Foi o caso de Anatalia de Souza Melo Alves, que teve os órgãos genitais queimados, antes de sua morte, em janeiro de 1973, no local em que funcionava a Seção de Comissariado da Delegacia de Segurança Social da Secretaria de Estado dos Negócios de Segurança Pública, em Pernambuco.

O relatório aponta também as marcas permanentes deixadas nas mulheres que sobreviveram à tortura: medo, vergonha, angústia e interferência nas decisões sobre os rumos para a própria vida.

“O fato de os crimes terem sido cometidos por agentes públicos encarregados de proteger a sociedade, a vida e a integridade física de seus cidadãos os fez aumentar o sofrimento da maioria dos sobreviventes, que ainda hoje padecem ao lidar com o estigma em torno dos crimes sexuais, a indiferença da sociedade e a impunidade dos violadores”, aponta o documento.

Essa é a realidade de Cristina Moraes Almeida, presa pela primeira vez aos 19 anos, em 1969. Nas sessões de tortura, sofreu mutilações na região do tórax e nos seios e teve a perna estraçalhada por uma furadeira.

“Eu quero esquecer. Mas eu te pergunto: qual é o profissional, na Psicologia, que vai apagar essas marcas? Não tem. Não tem. E hoje em dia eles [torturadores] dizem: ‘eu não sei, eu não vi, não me comprometa’. Olha, tacharem como torturador é um elogio. Assassino em série, sem sombra de duvida. […] Eu quero sair deste capítulo. Porque eu estou vivendo como se fosse ontem”.

A feminista Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, foi presa na Operação Bandeirante (OBAN) com o marido, César, em 1972, quando era militante política. Na prisão foi torturada e teve a maternidade usada contra ela ao ter suas crianças, Janaína e Edson, raptadas na Operação Bandeirante e levadas à sala de tortura para presenciar a violência sofrida pelo casal na prisão. Após o lançamento do relatório final da CNV, Amelinha declarou esperar que a justiça seja feita para as vítimas.

“O estupro era usado largamente. Muitas mulheres foram estupradas e até diria que as que foram assassinadas ou estão desaparecidas também viveram uma violência sexual como arma do inimigo, quando o Estado se declara dono do corpo dela, com poder político e social sobre ela”, afirma a ativista, que explica que, “durante a Ditadura Militar, foi grande o número de depoentes vítimas que denunciaram os estupros e nós, do movimento feminista, entendemos que o estupro praticado por um agente do Estado, em pleno exercício da sua função, como uma ação repressiva deve ser considerado uma violação de direitos humanos e crime de lesa-humanidade. Portanto, são crimes imprescritíveis e que devem ser devidamente punidos, como previsto pelos tratados internacionais”.

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