Mais transparência, investimento e capacitação: pesquisadora fala sobre os desafios para produzir mais e melhores dados sobre violência de gênero no país

Fernando Frazão – Agência Brasil

Ato do Fórum Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro. Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil.

25 de outubro, 2022 Agência Patrícia Galvão Por Juliana Vieira

A produção científica de coleta e análise de dados extraídos de órgãos públicos é uma ferramenta fundamental para evidenciar questões sociais multifatoriais, como as diversas formas de violências de gênero. Mas a dificuldade no acesso a esses dados, a inadequação das categorizações ou a própria falta de informações, além da precarização nos sistemas de transparência, impedem uma compreensão coletiva sobre esse fenômeno que vitimiza cotidianamente meninas e mulheres em todo o país. Como consequência, sai fortalecido o projeto que tem buscado impor graves retrocessos sobre os direitos das mulheres no Brasil.

Neste cenário de criminalização das pesquisas e de ocultação de informações pelas autoridades, o trabalho jornalístico ganha ainda mais relevância na mediação de questões de interesse da população e, ao mesmo tempo, torna-se também alvo de violências, conforme revela a intensificação dos ataques contra profissionais de imprensa apontada no relatório “O impacto da desinformação e da violência política na internet contra jornalistas, comunicadoras e lgbt+”, divulgado neste ano pela Gênero e Número e Repórteres sem Fronteiras. 

Em entrevista ao Boletim Violência de Gênero em Dados, uma das responsáveis pelo levantamento, a socióloga e pesquisadora Natália Leão, atualmente diretora de dados e pesquisa na Gênero e Número, reflete sobre essas e outras questões do contexto político-social do país. Além da dificuldade de produzir pesquisas nos últimos anos, fala também sobre os desafios do jornalismo para comunicar de modo acessível para um público mais amplo e da necessidade de escolhas metodológicas que considerem os grupos racializados e marginalizados e as populações empobrecidas e mais vulneráveis do país.

Vivemos um momento de criminalização das pesquisas, ocultação de informações  por autoridades e dificuldade no acesso aos dados públicos, além da normatização de narrativas anticiência e negacionistas. Diante desse cenário, como você analisa o contexto atual para o desenvolvimento de trabalhos de coleta e análise de dados, especialmente com enfoque nas violências de gênero? 

Natália Leão é socióloga, doutoranda pelo Iesp-Uerj e atual diretora de dados e pesquisa na Gênero e Número. (Foto: Arquivo pessoal)

Natália Leão: Pela experiência no trabalho da Gênero e Número, e como pesquisadora, vejo que  o cenário de coleta de dados vem sendo dificultado nos últimos três anos, principalmente porque muitos dados que eram públicos foram completamente retirados do ar, sem nenhuma perspectiva de quando voltarão, sob a justificativa de inovação das plataformas. Isso atrapalhou as pesquisas em torno de vários temas. No nosso caso, trabalhamos com dados sobre violência de gênero extraídos de bancos do Ministério da Saúde, como os do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), que não eram totalmente públicos. Para ter acesso às variáveis, como, por exemplo, identidade de gênero e orientação sexual, precisávamos solicitar via LAI (Lei de Acesso à Informação). Agora esses dados são públicos, mas nem tudo está ali, e a atualização das informações dentro do DataSUS é muito demorada. Há muita dificuldade de acesso e, quando acessamos, muitos dados não são de qualidade. É importante obter índices separados por sexo, raça, orientação sexual e identidade de gênero, mas normalmente estes itens não são preenchidos. Identifico que isso ocorre devido a uma falta de orientação sobre como esses dados devem ser preenchidos não pelo indivíduo, mas pelo sistema de saúde. E existe também uma falta de orientação e treinamento para quem preenche esses dados. 

A principal característica que identifico como dificultador para o desenvolvimento de coleta e análise de dados é a falta de investimento na formação das pessoas que vão preencher os dados e a criação de bancos de dados completos e com acesso público. É uma deficiência estrutural, um reflexo da falta de investimento na ciência como um todo, e que neste governo se agravou muito. Houve vários cortes na área, o que defasou ainda mais o acesso aos dados que já não eram de tão boa qualidade. E o cenário nos últimos anos só piorou pela falta de orçamento. Então, realmente, é uma falta de investimento estrutural, porque capacidade há. Outro fator: sempre somos questionadas sobre a validade dos dados: “mas de onde você tirou que tantos por cento das mulheres sofrem esse tipo de violência”? A gente fala: “olha, está aqui citado, está no banco de dados”. Com isso, entendo que também existe falta de informação da população sobre como o trabalho é feito. Informação por meio de propaganda pública mesmo, explicando as metodologias de pesquisa, como os dados sobre violência são coletados para que se chegue a um número real, uma amostra mais próxima possível do que acontece na sociedade. Além disso, é fundamental divulgar amplamente a necessidade de reportar os casos de violência para gerar informações que possam basear a formulação de políticas públicas.

As violências contra meninas e mulheres ganharam mais visibilidade nos últimos anos, principalmente pela atuação de organizações e movimentos de defesa das mulheres e pelo esforço de pesquisadoras em todo o país para produzir, analisar e divulgar dados sobre violência de gênero. Na sua avaliação, qual é a importância social da comunicação e do jornalismo de dados na mediação deste tema?

Natália Leão: Na Gênero e Número constantemente nos perguntamos: “como atingir mais pessoas?”. E achamos que sair do nicho e divulgar informação são fundamentais. Tornar os dados mais inteligíveis para um maior número de pessoas, com linguagem e conteúdos acessíveis para gerar identificação na vida da população. Por exemplo, se uma mulher tem dificuldade de sair de casa porque está sofrendo violência doméstica, não tem renda, não tem suporte do governo, não tem creche para os filhos, então, a comunicação precisa atuar ali. Fazer com que as pessoas articulem a qualidade ou falta de qualidade de vida com o cenário político e social, por meio do conhecimento de dados, de pesquisas, da ciência. No cenário atual, tem aumentado a falta de comunicação entre familiares, criou-se um abismo na compreensão sobre alguns assuntos. Em alguns casos, apenas uma pessoa naquela casa teve acesso ao ensino superior, em outros, as diversidades culturais e geográficas podem alargar as distâncias na comunicação. Por isso, comunicar de forma ampla, acessível e com base em dados continua a ser uma tarefa bastante desafiadora. E esta segue sendo nossa busca na Gênero e Número.

Neste ano, a Gênero e Número publicou o estudo “O impacto da desinformação e da violência política na internet contra jornalistas, comunicadoras e lgbt+”, que apresentou indicadores alarmantes sobre violência política e online e o uso de fake news para ataques a profissionais de comunicação: 41,9% das mulheres já sofreram violência online devido à profissão e 86% dos entrevistados notaram um aumento da desinformação desde o começo da gestão do atual presidente da República. Como este ambiente de estímulo à propagação de desinformação e à violência política tem impactado essas profissionais, tanto em sua vida pessoal como na maneira como elas trabalham?

Natália Leão: O processo desta pesquisa foi muito interessante e, infelizmente, também muito triste. Os resultados mostraram dados alarmantes: a desinformação e a violência de gênero mudaram completamente a vida das profissionais de comunicação. Ouvimos relatos de mudança de casa, de telefone. Algumas jornalistas começaram a ter um extremo rigor na seleção de suas postagens nas redes sociais, outras sofreram perseguições familiares. Foi instaurado um movimento de perseguição individual contra as profissionais. “Você é jornalista? Então, te odiamos.” E, com a pandemia, as relações no ambiente virtual se intensificaram, tal qual as invasões e ataques.

O jornalismo em si tem sido muito perseguido, especialmente por tocar em temas  fundamentais para nossa sociedade. Se você é jornalista e fala sobre comunidade LGBT+, mulheres ou violência, está inventando mentiras ou atacando o presidente. Mas, apenas estamos mostrando dados diversas vezes, a partir de perspectivas de décadas. Definitivamente, o principal impacto da propagação de desinformação e da violência política de gênero é esse estado permanente de “cuidado”, tanto na divulgação das informações pessoais quanto na forma de comunicar temas relevantes.

Quais foram os desafios para realizar o levantamento para a primeira edição do Mapa da Violência de Gênero, de 2020? Diante do sistemático descumprimento dos prazos previstos na LAI (Lei de Acesso à Informação, nº 12.527/2011), como foi a experiência de reunir as informações do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan)?  E como está a atualização deste estudo? 

Natália Leão: Realmente em 2020 houve um atraso muito grande nas respostas dos pedidos via LAI referente ao SIM para a elaboração do Mapa da Violência de Gênero (Gênero e Número, 2020). Até conseguimos coletar o que estava disponível no DataSUS, mas foi preciso fazer um pedido e houve muito atraso. Além disso, o tratamento dos dados é trabalhoso, porque são agrupados. É necessário tempo e minúcia para separar, analisar. E aí, de novo, a estrutura de preenchimento é muito ruim e acaba dando trabalho e um retrabalho imenso para a sistematização das informações.

Na próxima atualização do estudo que está prevista para ser lançada no primeiro semestre de 2023 e será feita por etapas , vamos hospedar o conteúdo no site do DataSenado. Vamos juntar o Mapa da Violência de Gênero com o painel de violência contra a mulher que o DataSenado disponibiliza e reunir em apenas uma plataforma. E o passo seguinte será trazer dados sobre segurança pública. O que demanda outro tipo de coleta, já que cada estado disponibiliza as informações de forma diferente. É um desafio enorme. Fizemos a solicitação via LAI para todos os estados e a grande maioria não respondeu na data, pediu prorrogação ou indicou outro órgão. Pedidos refeitos, novos prazos, já que os pedidos não eram encaminhados internamente para outros setores. Também recebemos respostas-padrão, de que, de acordo com a proteção de dados da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, Lei 13.709/2018), não poderiam disponibilizar os dados. Então, era necessário fazer novo pedido solicitando dados anonimizados, que não desrespeitam a LGPD. Outro exemplo: por vezes, se você não mora no estado do qual pretende acessar as informações, sua solicitação é negada. As tentativas de negar o acesso aos dados são constantes. 

Justamente por isso, também vamos criar um índice de qualidade dos dados para disponibilizar às secretarias dos estados. A ideia é construir critérios e categorias do processo de coleta de dados, mostrando as etapas, para, a partir da nossa experiência, gerar um modelo de envio/resposta que os órgãos públicos poderão implementar nas próximas consultas. Queremos reforçar para as secretarias a importância da disponibilização dos dados, para que a alimentação das informações, vinculada ao DataSenado, não seja comprometida.

Qual é a importância das escolhas metodológicas de coleta, mensuração e tratamento de dados para dar visibilidade para as violências cometidas contra grupos racializados e marginalizados, as populações empobrecidas e mais vulneráveis?

Natália Leão: Não tem como desconsiderar essas escolhas metodológicas porque o Brasil é um país que discrimina, é extremamente desigual – regionalmente, nas cidades, nos bairros. Isso é visível e é fundamental comunicar essas desigualdades, porque há uma política discriminatória sendo normalizada, sendo institucionalizada, e que afeta muito a população negra, pobre e marginalizada. É importante colocar a descrição racial nas pesquisas, para favorecer a compreensão sobre o histórico de discriminação no país, assim como dar luz à discriminação racial velada e ao discurso romantizado da miscigenação, ainda muito presente. Um debate recente sobre o Censo do IBGE questionou a inclusão da identidade de gênero no levantamento, pois nessa pesquisa quem responde é a pessoa que está no domicílio e, no caso de haver jovens que não são aceitos ou reconhecidos por sua orientação sexual, esse dado pode ser comprometido e não aparecer nos resultados do Censo, o que não significa que não há LGBT+ no país. Diante disso, precisamos fazer outro tipo de pesquisa oficial que contemple essa população. Falta incentivo para incluir alguns grupos importantes nas pesquisas oficiais no Brasil. Portanto, é urgente considerar cada vez mais metodologias que abordem a amplitude social e a diversidade do país.

Sobre o Boletim Violência de Gênero em Dados

Realizado com apoio do Consulado Geral da Irlanda em São Paulo, o Boletim Violência de Gênero em Dados divulga mensalmente uma seleção de estatísticas e dados de estudos realizados por órgãos governamentais, institutos de pesquisa e organizações da sociedade civil, sobre os diversos tipos e formas de violência contra as mulheres, com curadoria da equipe do Instituto Patrícia Galvão. Saiba mais.

 

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