03/05/2012 – Em decisão inédita, STJ condena pai por ‘abandono afetivo’ de filha

03 de maio, 2012

“É uma ação que eu movi para mostrar mesmo que não se deixa uma pessoa abandonada, rejeitada”, afirma a professora Luciane de Oliveira Souza


(Nádia Guerlanda e Johanna Nublat, da Folha de S.Paulo-DF, com Carolina Leal, de SP) Em decisão inédita, tribunal determinou que ele pague indenização por abandono de filho que teve fora do casamento. ‘Amar é faculdade, cuidar é dever’, afirma relatora; defesa do pai, que nega abandono, deve recorrer

Em decisão inédita, o Superior Tribunal de Justiça determinou a um pai que pague indenização de R$ 200 mil à filha por danos morais por abandono afetivo -quando um dos pais deixa de dar assistência moral ou afetiva, independentemente da questão material.

No processo, a filha, nascida fora do casamento e já maior de idade, afirma não ter recebido suporte afetivo do pai na infância e na adolescência e ter sido tratada de forma diferente dos outros filhos, nascidos dentro do casamento.

“Amar é faculdade, cuidar é dever”, disse a relatora do caso, a ministra Nancy Andrighi. Segundo ela, a discussão no processo não era o amor do pai pela filha, mas o dever jurídico que ele tem de cuidar dela.

“Entre os deveres inerentes ao poder familiar, destacam-se o dever de convívio, de cuidado, de criação e educação dos filhos (…), que envolvem a necessária transmissão de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento socio-psicológico da criança.”

A decisão foi dada pela terceira turma do STJ, que ainda não havia analisado o tema. Em 2005, a quarta turma negou indenização para caso semelhante. Em 2009, em recurso ao Supremo Tribunal Federal, houve nova recusa.

O abandono afetivo não é previsto em lei. Há dois projetos no Congresso que preveem indenização e até punição.

O processo começou em 2000 em Sorocaba (99 km de SP) e foi julgado improcedente na primeira instância. O Tribunal de Justiça reformou a decisão e fixou indenização de R$ 415 mil. Com o recurso para o STJ, o valor baixou para R$ 200 mil, corrigidos desde 2008.

Na ação, Antonio Carlos Jamas dos Santos, o pai, alega que não abandonou Luciane Nunes de Oliveira Souza, a filha. Seu afastamento teria sido motivado pela agressividade da mãe, que não o deixava visitar a criança. Afirmou ainda que a única punição possível pelo abandono afetivo seria a perda do pátrio poder.

Segundo a filha, além do abandono afetivo, houve diferença de tratamento entre ela e seus irmãos: eles estudaram em universidades privadas e cursaram idiomas, atividades às quais ela não teve acesso.

A condenação, apesar de levar em conta essa diferenciação entre filhos, não inclui indenização por dano material.

Para a ministra Nancy, a decisão “abre um caminho para a humanização da Justiça”.

O advogado do pai afirmou que deve recorrer. Como houve um voto divergente, um recurso deve ser analisado em conjunto pelas terceira e quarta turmas -uma delas terá de rever sua posição. O defensor afirmou que o cliente não quer comentar a decisão. O mesmo disse o advogado da filha.

Avaliar caso de abandono é complexo, diz terapeuta

Para mestre em psicologia, é preciso avaliar lesões de fundo emocional. Filho que diz ter sido abandonado pelo pai afirma que disputa pode atrapalhar uma reaproximação

Avaliar o abandono afetivo por parte de um pai e os danos que ele pode ter causado ao filho é tarefa complexa e depende muito de cada caso, na opinião da psicoterapeuta Tai Castilho. “Como vai ser avaliado esse abandono afetivo? Que lesões [do ponto de vista emocional] teve esse filho para mover uma ação?”

Segundo ela, em casos de separação conflituosa é comum a própria mãe se colocar de forma a afastar os filhos do ex-companheiro.

“Existe um jogo que é uma irritação da mulher de que os filhos fiquem com o pai.” Isso, diz, leva a mãe a falar mal do pai para os filhos e, muitas vezes, “os filhos se aliam à mãe e evitam o pai”.

Ela cita o caso de um jovem que ficou anos sem falar com o pai, acreditando que era negligenciado. Tempos depois, os dois se reaproximaram e o jovem descobriu que o pai observava o filho todos os dias na saída da escola, mas não tinha coragem de abordá-lo.

Já outra situação presenciada pela psicoterapeuta é a de um filho fruto de uma relação extraconjugal que ganhava pensão, mas era rejeitado pelo pai. “Isso eu entendo como abandono afetivo.”

Para Júlio Cézar da Mota, 32, que passou pela situação, é positivo ter garantido direito à indenização por abandono afetivo, mas a batalha judicial pode atrapalhar eventual reaproximação com o pai.

“É boa [a decisão], tem pessoas que pensam diferente de mim. Eu não tenho coragem de correr atrás disso agora, mesmo com a decisão do STJ. Se fosse mais cedo, quando eu tinha uns 22 anos, acho que eu teria outra cabeça e iria atrás.”

Para Mota, que trabalha em um cursinho de Brasília, é preciso pesar a vontade de se reaproximar da família.

“Não vai mudar [o passado] e acho que não fica legal em relação aos meus irmãos [por parte de pai]. Tenho um vínculo legal com eles. Agora, se o filho não quer ter uma reaproximação, mas quer a indenização, é outra coisa. Aí é indiferente a reação do pai.”

Ele conta que foi criado pela mãe e que sentiu a falta do pai, que tentou reaproximação só no fim da adolescência, diz. “A gente passa por uma fase em que tem que ter apoio de pai e mãe, não só financeiro, mas de orientação pra vida.”

Decisão é pedagógica, afirma advogado
Além de abrir precedente para casos semelhantes, a decisão do STJ fará os pais se perguntarem “como estão tratando seus filhos”, diz Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família

Folha – Como o sr. avalia a decisão do STJ?

Rodrigo da Cunha PereiraEssa decisão é muito importante porque tem uma dimensão política muito grande e um caráter didático. Os pais vão se perguntar como estão tratando seus filhos. Qual é o argumento contrário? O de que não tem como obrigar um pai a amar um filho. Claro, mas o que está escrito na lei é que o pai é responsável pela educação do filho. E tem que responder por isso. Afeto, no sentido jurídico, não é um sentimento. Se traduz como um cuidado, como educação, como colocar limites.

A decisão abre margem para mais processos como esse?
Abre um precedente importante. Isso não tem volta, é a tendência da família mais contemporânea.

Qual o sentido da indenização?
É mais no sentido de responsabilizar o pai, que faltou com sua obrigação de dar cuidado. Se o tribunal disser que o pai não tem que responder por isso, está dizendo que o pai não é responsável pela educação do filho.

Qual o histórico dessa decisão?
Essa história começou em Minas Gerais, com um cliente meu, o Alexandre Fortes. Ganhamos, mas o STJ falou que era um equívoco. Isso foi discutido no Brasil todo, há várias decisões desse tipo, favoráveis, em nível estadual. Fiquei muito feliz agora porque o STJ tomou decisão diferente da que foi tomada alguns anos atrás. Mudaram os ministros e eles reconheceram o equívoco. Na época, tentamos levar o caso para o STF (Supremo Tribunal Federal), mas o tribunal não quis enfrentar a situação.

O caso julgado não cita também uma diferenciação material [entre os filhos]?
É diferente [da responsabilidade material] porque a lei diz que o pai é responsável materialmente e moralmente. Está na lei. Não é a questão material. Essa indenização é simbólica porque, seja qual for o valor da condenação, não vai resolver o problema. Não tem dinheiro que pague a falta de afeto.

Acesse em pdf:
STJ condena pai por não dar afeto a filha (Folha de S.Paulo – 03/05/2012)
Avaliar caso de abandono é complexo, diz terapeuta (Folha de S.Paulo – 03/05/2012)
Decisão é pedagógica, afirma advogado (Folha de S.Paulo – 03/05/2012)
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Em decisão inédita, STJ condena pai por ‘abandono afetivo’ de filha (O Estado de S. Paulo – 03/05/2012)
Sentença abrirá precedentes em instâncias superiores

(O Estado de S. Paulo) A decisão do STJ abrirá precedentes, segundo juristas. Nos tribunais regionais, a indenização por abandono afetivo não é inédita, mas parte dos casos não segue para instâncias superiores. “Pessoas que desistiam da ação nessa fase poderão agora apelar ao STJ”, avaliou o advogado Nelson Sussumu Shikicima, presidente da Comissão de Direito de Família da Ordem dos Advogados do Brasil-SP. Os tribunais superiores, ou terceira instância, são os que julgam recursos contra decisões dos órgãos de segunda instância. – Sentença abrirá precedentes em instâncias superiores (O Estado de S. Paulo – 03/05/2012)

Leia também:
Por que me abandonaste?, por Maria Berenice Dias (O Estado de S. Paulo – 06/05/2012)
06/05/2012 – Justiça avança em conflitos modernos

 

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