15/06/2012 – Sob o manto da violência doméstica, por Jacqueline Pitanguy

15 de junho, 2012

(O Globo) Durante séculos a violência contra mulheres exercida entre os muros da casa, por maridos e companheiros, conhecida como violência doméstica, não tinha visibilidade pública nem era reconhecida como crime. As mulheres apanhavam no silêncio do lar, entre tapas e beijos, no espaço emocional que, teoricamente, lhes traria segurança. Sendo esta uma violência de repetição, apanhavam com regularidade e frequentemente morriam assassinadas. Essa forma de violência se diluía na cumplicidade da sociedade, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, e na ausência de acolhimento institucional às vítimas.
De fato a configuração da violência doméstica como crime, passível de punição, e a implementação de delegacias especializadas, legislações e juizados próprios para acolher suas vítimas esperaram séculos de nossa história para serem efetivadas, e o foram por uma luta árdua e continuada dos movimentos feministas.
Hoje, apesar de que esta violência continua a existir, suas vítimas sabem que não devem ficar caladas porque há quem acolha suas denúncias. O aumento expressivo dos registros de violência contra mulheres no Brasil é também indicador de que se está rompendo o silêncio e a invisibilidade que cobria este tipo de agressão.
Existe entretanto em nosso país outra forma de violência ainda encoberta pelo manto da invisibilidade, uma forma de agressão perversa, silenciosa e constante: me refiro à violência sexual contra crianças e adolescentes, perpetrada por seu pais, padrastos, tios, parentes, homens adultos geralmente próximos das vítimas. Os laços de autoridade, afetividade e dependência que unem a vítima ao agressor aumentam exponencialmente seu desamparo e vulnerabilidade. Enquanto no caso da mulher adulta é ela, via de regra, que rompe o silêncio e denuncia, as meninas e adolescentes, maiores vítimas deste tipo de abuso, necessitam do apoio de um adulto para romper o manto de invisibilidade que protege o agressor. Necessitam do apoio de mães, parentes, ou de instituições como a escola, ou serviços de saúde quando atendem meninas com doenças sexualmente transmissíveis e gravidez precoce.
A criança não chega sozinha a uma delegacia de polícia, nem a um hospital, tem medo de falar com a professora e vergonha de contar para as colegas, se sente envergonhada e culpada e vê seu desamparo aumentar diante da relação afetiva de sua mãe com o monstro agressor, em casos de incesto ou abuso por padastros. Confundida e aterrorizada por ameaças do agressor ela teme denunciar o que ela nem mesmo sabe como nomear.
O depoimento público corajoso e digno de Xuxa às câmeras de televisão no programa “Fantástico”, relatando abusos sexuais sofridos em sua infância e adolescência, tem tido um efeito catalizador. A capacidade multiplicadora de suas revelações tem levado adolescentes a romper os grilhões desta forma de prisão onde o abuso sexual as une de forma perversa e aterrorizada ao agressor.
Esperamos que as denúncias se multipliquem, que os adultos que cercam a criança abusada tenham um olhar mais atento para os sinais físicos e emocionais deste abuso, e que os agressores recuem em seu comportamento predatório e criminoso.

Jacqueline Pitanguy é socióloga e coordenadora da organização não governamental Cepia

Leia em PDF: Sob o manto Doméstico, por Jacqueline Pitanguy ( O Globo – 15/06/2012)

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