27/102012 – Ganhadora do Nobel da Paz, líder das mulheres contra a guerra na Líbéria, vem ao Brasil

29 de outubro, 2012

(O Globo) O teatro grego criou Lisístrata, a ateniense que, cinco séculos antes de Cristo, liderou mulheres numa greve de sexo. Ao rejeitarem os seus maridos, ajudaram a acabar com a guerra entre Esparta e Atenas. No mundo real do fim do século XX e início do XXI, a brutal guerra civil na Libéria, país do oeste africano, criou Leymah Gbowee. Unindo cristãs como ela e muçulmanas, Leymah — assim como a personagem de Aristófanes — propôs que as liberianas parassem de transar com seus parceiros.

— Nós não aguentávamos mais não sermos ouvidas, e achei que chamaríamos a atenção dos homens pelo sexo. Foi uma maneira criativa de mostrar nosso poder — diz a ativista, que falou com exclusividade por telefone ao ELA antes de desembarcar no Rio, semana que vem, para participar do fórum “Mulheres Reais que Transformam”.

O ano era 2002, e o conflito civil na Libéria já durava 13 anos. A ativista havia testemunhado as maiores atrocidades. Vestidas de branco e reunidas em praças públicas e campos de futebol, sem ter relações com os rebeldes e as tropas do ditador Charles Taylor, as mulheres conseguiram ser incluídas nas negociações de paz. O cessar-fogo veio um ano depois. Taylor foi extraditado e condenado a meio século de prisão pela corte internacional de Haia. Aos 40 anos, Leymah, com um Nobel da Paz (2011) debaixo do braço, diz que ainda há muito o que fazer, e percorre o mundo falando o quê.

— Sou uma feminista com ponto final, sem reticências. A mulher precisa ganhar mais poder para equilibrar melhor o mundo.

“Nunca tive medo”
As imagens rodaram o planeta e renderam fama a Leymah Gbowee. Em 2003, a ativista liderou centenas de damas de branco ao palácio presidencial de Monróvia, a capital da Libéria, para uma audiência diante de um constrangido Charles Taylor. Ela recusou a sentar-se numa cadeira que lhe foi oferecida, preferindo o chão para ficar perto das colegas — a maioria em plena greve de sexo. Diante do brutal ditador, que foi praticamente obrigado a receber as ativistas por conta do barulho que faziam nas ruas, Leymah disse: “Nós, mulheres da Libéria, não permitiremos mais ser estupradas, abusadas, exploradas e mortas. Estamos cansadas da guerra”.

O cessar-fogo veio, e Leymah esteve na vizinha Gana quando o acordo de paz foi assinado, sob forte pressão internacional, dando fim à guerra que matou 250 mil pessoas.

— Nunca tive medo porque sabia que tinha muita gente do meu lado — diz a ativista, cujas lembranças dos anos de conflito são as piores possíveis.

Certa vez, no centro de Monróvia, viu um cachorro comendo a mão de uma mulher morta. A lembrança mais triste, no entanto, foi a de dois meninos que andavam numa estrada quando milicianos pararam um caminhão para levá-los, provavelmente como crianças-soldado.
— Os dois começaram a correr para fugir. Um deles levou um tiro na cabeça e caiu morto na hora. O outro se jogou numa poça de lama. Fiquei sem dormir a noite toda pensando o que aconteceu com aquela criança, lembro até hoje da carinha dela.

Leymah, que já trabalhava como ativista desde os anos 90, viu sua vida se transformar com a queda de Charles Taylor e a eleição, em 2005, de sua ex-amiga Ellen Johnson Sirleaf. As duas dividiram — com a iemenita Tawakkul Karman — o Nobel 2011 por sua participação no processo de paz na Libéria. Leymah passou a integrar o governo, do qual saiu este mês alegando frustração com as políticas públicas de combate à corrupção e à pobreza. Sirleaf ainda é acusada de nepotismo, já que seus filhos ocupam postos-chave no governo.

— Não deixei o governo por causa dela, mas sim porque gente ligada a ela disse mentiras sobre a minha fundação (que atua em vários países africanos, ajudando meninas a obterem educação de qualidade). Disseram que eu recebia dinheiro público, o que não é verdade. Tenho plenas condições de buscar financiamento para os meus projetos, que são separados de qualquer um do governo. Esperava um pedido de desculpas público da Presidência, que não veio — critica Leymah.

Segundo a Nobel da Paz, apesar de a guerra ter acabado, a Libéria avançou pouco em trazer melhorias ao seu povo.

— Este é o maior desafio de Sirleaf, corrupção e pobreza são duas coisas inegociáveis. O legado dela depende disso.

Ela é mãe de seis filhos com idades entre 19 e 3 anos, dois homens e quatro mulheres — um das meninas é adotada, e a caçula, nascida em 2009, é filha de seu atual parceiro, um homem que trabalha com tecnologia chamado James, mas que não revela o sobrenome. Os outros filhos são de seu ex-marido, de quem está afastada.

Há 14 anos Leymah não sabe o que é ficar um mês inteiro em casa. Se antes viajava pelo interior da Libéria e para os países vizinhos — sempre trabalhando com políticas de fortalecimento da mulher na sociedade —, depois do Nobel seu espectro se ampliou. E muito. Antes de vir ao Rio em sua primeira visita ao Brasil, percorrerá o México.

— Conheço pouco a América Latina, mas ouvi muitos elogios à sua presidente, a Dilma. Gostaria de conhecê-la.
Ela acha que os direitos da mulher são mais avançados aqui do que na África, mas vê pontos negativos em comum: mortes no parto, problemas de saúde decorrentes de uma aborto mal feito, desnível salarial, violência doméstica.

— Se houvesse políticas eficazes de saúde feminina e de natalidade, talvez não houvesse a necessidade de tantos abortos. De qualquer maneira, sou defensora árdua de que a mulher deve decidir sobre o destino de seu corpo.

Os filhos e o parceiro, diz, entendem o fato de ela ficar tanto tempo longe de casa.

— Falo que nem todos são privilegiados como eles, e que precisam da minha ajuda. Mas a gente se fala diariamente. E a família tem duas regras: sempre volto para casa no aniversário dos meus filhos e nunca viajo no mês de dezembro. Com eles de férias, a gente fica em casa, passeia, vai à praia, no maior grude. Somos uma família legal.

No Brasil, tentará inspirar conversando com as mulheres e relatando a sua história, detalhada no recém-lançado “Guerreiras da Paz — como a solidariedade, a fé e o sexo mudaram uma nação em guerra”. A dinâmica do mundo, afirma, mudaria se mais mulheres estivessem no poder.

— É que a maioria das tragédias ocorrem devido a problemas de liderança. E nós mulheres somos mais conscientes das necessidades dos outros.

O sonho foi bem estranho, mas ela não desistiu

Tudo começou em 2002, quando, num mercado de peixes, Leymah incitou mulheres a cantar e orar em protesto com a guerra. Em 2009, Bob Herbert, colunista do “The New York Times”, escreveu sobre “Pray the Devil Back to Hell”, um documentário sobre o trabalho da pacifista:
“No filme, a mulher cuja família teve que aguentar a agonia da guerra civil na Libéria fala de um sonho que teve, em 2003, em que alguém a instigava a reunir as mulheres da sua igreja para rezarem pela paz. Rezar parecia uma bobagem em comparação com as forças do tirânico Charles Taylor, o então presidente, e a brutalidade dos rebeldes que desejavam tirá-lo do poder. A violência era assustadora. Pessoas morriam às centenas diariamente. O estupro virou lugar comum. Crianças passavam fome e cenas do filme mostravam algumas que tinham os membros amputados. Esse seria um ambiente para despertar um sentimento de desolação sem volta. Mas Leymah Gbowee, a mulher que teve um sonho louco, não desistiu.

Certa vez, quando tentavam um acordo de paz, num encontro fora do país, em Gana, que parecia ir por água abaixo, Leymah e 200 seguidoras fizeram piquete até o pacto sair. A Libéria decididamente não é um dos países mais estáveis do mundo, mas a história desta pacifista nos mostra o poder incrível que pessoas comuns podem ter — quando há coragem e comprometimento suficientes”.

Acesse em pdf: Leymah Gbowee, que venceu uma guerra com greve de sexo, quer conhecer Dilma Rousseff (O Globo – 27/10/2012)

 

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