29/12/2012 – Gravidez como castigo?, por Sinara Gumieri

29 de dezembro, 2012

(Correio Braziliense) Há poucos dias, foi divulgado que o juiz Geraldo Carlos Campos, titular da 32ª Vara Cível de Belo Horizonte, negou autorização para realização de aborto a uma mulher portadora de miocardiopatia dilatada familiar, patologia que a impede de levar a gravidez adiante. Segundo a decisão, a mulher teve um aborto judicialmente autorizado em 2011, pela mesma razão: o risco que a gestação representava a sua saúde. Agora, no entanto, o juiz considerou que o casal foi “negligente” ao não adotar método contraceptivo eficaz, e negou-lhe o pedido.

A decisão é manifestamente ilegal. Embora ainda seja criminalizado no Brasil, o Código Penal de 1940 estabelece duas situações em que aborto não é punido: quando a gravidez coloca a saúde da mulher em risco – o chamado aborto necessário – e quando a gestação é decorrente de estupro. Esses casos de aborto legal, assim como a antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico (conforme recente decisão do Supremo Tribunal Federal), são, portanto, direitos da mulher. Não se trata, assim, de um caso difícil, marcado por conflitos de princípios jurídicos que comumente orientam o debate sobre o aborto em caso de gravidez indesejada. Diante de um caso legalmente previsto de aborto necessário para proteger de risco de vida, o juiz decidiu que uma mulher deve morrer por ter engravidado.

Mas não é só isso. O juiz justificou a perversa decisão argumentando que, no pedido anterior de autorização para aborto, o casal havia sido orientado pelo Judiciário sobre a necessidade de adotar um método contraceptivo “definitivo e eficaz”. Desdobrando tal lógica, não tendo o casal cumprido a orientação, a atual gravidez de risco para a mulher seria uma sanção punitiva? Julgando a legitimidade das práticas contraceptivas do casal, o juiz inventou um requisito para o aborto necessário. De quebra, violou a perspectiva de planejamento familiar adotada pela Constituição Federal de 1988, que o define como “livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas” (art. 226, § 7º). Planejamento reprodutivo acompanhado de sanção não é planejamento, é controle de natalidade.

Essa decisão, da qual cabe recurso, simboliza o cenário brasileiro de desrespeito sistemático aos Direitos Sexuais e Reprodutivos das mulheres. Previstos em marcos internacionais com os quais o Brasil assumiu compromissos políticos, como o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, e a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, sediada em Pequim, em 1995, referem-se ao direito ao livre exercício e expressão da sexualidade, a uma vida sexual segura e satisfatória, à capacidade reprodutiva e à liberdade de decidir sobre quando, como e quantas vezes fazê-lo, sem discriminação e violência. Envolvem também o direito de informação e acesso a métodos conceptivos e contraceptivos eficientes e seguros, bem como aos serviços de saúde necessários.

A despeito de tais marcos de direitos humanos, a cultura patriarcal tem feito da gravidez um dispositivo de controle sobre mulheres e seus corpos. À decisão do juiz de Belo Horizonte, somam-se violências institucionais e propostas legislativas inconstitucionais. É preciso lembrar, por exemplo, dos obstáculos e barreiras muitas vezes impostos ao atendimento de mulheres nos serviços de aborto legal, que vão desde a objeção de consciência seletiva até julgamentos morais sobre a violência sexual sofrida. Denúncias de violência obstétrica têm chamado atenção para abusos e maus-tratos praticados por profissionais da saúde pública e privada contra mulheres gestantes e em situação de parto.

Há poucos meses, a felizmente caduca Medida Provisória nº 557 tentava instituir um sistema de cadastro e vigilância de gestantes sob o pretexto de combater a mortalidade materna sem enfrentar o óbvio problema do aborto clandestino e inseguro. Atualmente, o projeto de lei do Estatuto do Nascituro (PL nº 478/2007) busca criar para embriões humanos um estatuto moral e jurídico superior ao de pessoas nascidas e vivas, reduzindo mulheres a recipientes de fetos. Nesse contexto, a gravidez, desejada ou não, viável ou não, é instrumento de opressão: mulheres que querem e mulheres que não querem ou não podem ser mães são irmanadas em violações de seus Direitos Sexuais e Reprodutivos.

SINARA GUMIERI Consultora jurídica em direitos humanos e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis)

 

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