08/06/2013 – Antropóloga comenta caso de salvadorenha que não pôde fazer aborto seguro

08 de junho, 2013

Mesmo sob risco de morte, jovem salvadorenha não pôde fazer aborto seguro no tempo certo

(O Estado de S. Paulo) A ligação não era um convite, mas uma intimação. “Você precisa embarcar imediatamente. Beatriz corre risco de morte e tentaremos convencer a Corte Suprema de El Salvador a mudar a decisão contrária ao aborto.” Até então, Beatriz era uma mulher sem rosto cuja história me mobilizava pelo sofrimento; naquele instante, passou a ser parte de minha vida. Imaginei sua solidão em uma cama de hospital, longe do marido e do filho de 1 ano – o lúpus ameaçava a sobrevida de seu corpo grávido, os rins anunciavam falhar. A voz ao telefone era gentil, mas se postulava como uma ordem: especialistas falariam aos juízes da Corte Suprema no julgamento dali a dois dias. Eu deveria me manter em silêncio sobre a viagem. Sob a credencial de especialista em bioética, meu dever era traduzir o óbvio em argumentos éticos. Ao final da ligação, uma pergunta me perturbava: no que acreditavam os que sentenciavam Beatriz à morte?

Saí à procura de seus argumentos. O primeiro que encontrei como porta-voz dos direitos do feto foi o arcebispo de São Salvador, José Luis Escobar. Sua voz recitava o mantra do medo: “Nos preocupa que o caso dessa jovem seja a porta para legalizar o aborto em El Salvador”. O aborto é um absoluto moral segundo a Constituição Federal daquele país, um dos cinco da América Latina com leis tão restritivas, após uma reforma conservadora em 1999. A prática é proibida em todas as circunstâncias. A morte ou o parto seria o destino daquela mulher confinada ao hospital.

Encontrei um país dividido: ou se estava do lado da Igreja Católica ou contra ela. A excomunhão era uma ameaça franca ao burburinho político. Não sei se por prudência ou por arrogância, a corte indeferiu a participação dos especialistas. Isso foi no dia 10 de maio. Somente no dia 3 de junho Beatriz se submeteria à cesárea para não morrer grávida.

A peregrinação de Beatriz pelas autoridades teve início quando ainda estava com 13 semanas de gestação, logo após ter recebido o diagnóstico da malformação letal no feto. Nessa fase da gravidez, o aborto teria sido um procedimento médico de baixo risco para sua saúde e, possivelmente, realizado com medicamentos. Entre as vozes internacionais a pressionar El Salvador estava Juan Méndez, relator da ONU sobre tortura, que declarou a urgência de o país rever a legislação de aborto.

O caso perdeu-se pelas cortes locais e alcançou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que optou por um caminho ambíguo no pronunciamento – sustentou que El Salvador deveria evitar danos irreparáveis à vida e à saúde de Beatriz, mas evitou afirmar o direito ao aborto como medida para salvar sua vida. A espera foi torturante para Beatriz, mas um alento para um país amedrontado pelo dogma. A mesma ciência incapaz de acalmar os espíritos que acreditam que células recém-fecundadas são uma vida inviolável é que demarca a fronteira entre aborto e parto. Beatriz não soube como resistiu à espera sem sentido; era preciso superar a barreira das 20 semanas de gestação para o procedimento médico mudar de nome. Com 27 semanas, submeteu-se a uma cesárea e a uma ligadura tubária. O feto sobreviveu cinco horas fora de seu útero.

Não conheci Beatriz. Nunca vi o seu rosto, só ouvi sua voz. Beatriz gravou um depoimento emocionado em que choramingava “eu quero viver pelo meu outro filho”. Era um pedido de socorro de uma mulher desesperada e desencarnada pela maternidade: ser mãe era o que a animava a viver, mas também o que justificava a sentença de morte imposta pelo Estado. Beatriz nem sequer se imaginava digna de viver por si mesma – seu pedido de socorro era pelo filho. Imagino-a uma mulher refém do próprio corpo, estrangeira no país que já a marginalizava pela pobreza. Agora, é mártir de uma história que não escolheu viver em um corpo doente, marcado pela lei e pelo pecado. Perturba-me imaginar como será a vida de Beatriz após sua saída do hospital.

Os grupos religiosos a descrevem como uma mulher mãe de dois filhos: o que espera seu acolhimento e o que foi enterrado como atestado da inutilidade da espera. Nessa longa jornada até a cesárea, planejou-se levar Beatriz para o México ou Espanha, países que a acolheriam como refugiada em procura da sobrevivência por um aborto seguro. A vida concreta de Beatriz é o que existe antes e depois dessa triste história. Imagino que ela esteja se preparando para voltar à vida comum de uma mulher pobre do interior de El Salvador, um dos países mais miseráveis da América Central – casa, família e trabalho voltarão a ser sua rotina. A mártir nacional, a mulher que acendeu a ameaça da excomunhão, será esquecida por quem se lançou no seu caminho como defensor da vida do feto. Mas Beatriz não é um dogma, é uma mulher concreta. Beatriz não é uma assassina, apenas queria manter-se viva. Ela sentiu medo, suplicou pela vida e esperou. Aos 22 anos, é uma sobrevivente.

* DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO

Acesse em pdf: Refém do corpo, por Debora Diniz (O Estado de S. Paulo – 08/06/2013)

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