03/11/2013 – “Nunca me promoveram por merecimento”, afirma a juíza Maria Berenice Dias, pioneira no Judiciário brasileiro

03 de novembro, 2013

(Zero Hora) Foi a vida, e não as salas de audiência, que forjou a figura pública de Maria Berenice Dias, 66 anos, a primeira mulher a se tornar juíza e desembargadora no Rio Grande do Sul. As dificuldades de afirmação em meio a um ambiente 100% masculino, tradicionalmente refratário às mulheres, tornaram Berenice uma desbravadora de costumes. Sua trajetória começou com a defesa dos direitos femininos e derivou para a causa dos homossexuais.

Nesta entrevista em seu amplo apartamento no bairro Menino Deus, ela se lembra do pai, que lhe serviu de exemplo e que tinha lá suas contradições. Relata os percalços de quem abre portas emperradas pelo conservadorismo patriarcal e conta um pouco da vida pessoal. Mostra como tudo se confunde nos 40 anos passados desde que se tornou juíza pioneira em Ibirubá, em 1973.

Mãe de três filhos (um homem de 36 anos e duas mulheres, de 33 e 32) e tendo passado por cinco casamentos, ‘todos eles heterossexuais’, Berenice fala com voz grave, o riso aberto, pontuando as frases com ‘sabe’? e ‘entende’?, tentando se fazer, enfim, compreender.

– Mesmo convivendo com homossexuais, nunca desejei uma mulher – conta.

A marca de defensora dos homossexuais colou em Berenice quando, em 2001, o Tribunal de Justiça gaúcho foi o primeiro do Brasil a reconhecer a união estável entre dois homens, num processo de divisão de bens. Era o coroamento do seu trabalho, mas ainda estava longe de ser o fim.

Leia trechos da entrevista por aquela que se define como ‘a juíza dos afetos’.

Avanço das mulheres
– Maria Berenice Dias diz que carregou um fardo pesado ao abrir a porta para as mulheres na Justiça gaúcha. Os números atuais do Judiciário, porém, mostram que seu pioneirismo não foi em vão.

– Neste momento, as entrâncias intermediárias do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul são divididas em 41% de homens e 59% de mulheres.

– Na entrância final (a última etapa antes de se tornar desembargador), 58% são homens e 42% são mulheres.

– Entre os desembargadores (os cargos mais altos e antigos), 72% são homens e apenas 28% são mulheres.

Quando surgiu a inclinação para questões de gênero?

Por que me tornei sensível aos excluídos, àqueles a quem a sociedade não quer ver? Pela discriminação que sofri para entrar na magistratura. Eu pensava: como não posso ocupar um espaço para o qual me criei? Em casa, temos dois modelos, do pai e da mãe. Meu pai era provedor, saía, trabalhava, se realizava, voltava feliz… E tinha a mãe, com os filhos e suas funções. Eu tinha os dois modelos, mas me identificava só com um,
o do meu pai.

A senhora acompanhava o trabalho do seu pai como juz?

O juiz não tinha gabinete. A casa sempre estava cheia de processos. Ele era realizado, trabalhava com menor infrator. Eu tinha admiração, não imaginava ser outra coisa.

Como foi sua formação?

Fiz escola normal. Era esse o caminho que a mulher trilhava. Fiz Direito, mas foi complicado. Na época, tinha o clássico, o científico e o normal. Quem fosse estudar Direito tinha de ter feito o clássico, com aulas de latim, e eu não havia tido aquilo. Então, tive de me preparar muito, resgatar o que eu não havia tido, com aulas particulares.

A senhora foi a única filha juíza?

Meu pai tinha cinco filhos (Berenice, duas irmãs e dois irmãos), e a única que manifestou o desejo de seguir a carreira dele fui eu. Quando morreu, meu pai tinha um papelzinho com as minhas notas da faculdade no bolso. Era complicado, era meu último ano.

Seu pai não viu sua formatura?

Ele iria representando o presidente. Foi forte. Morreu seis meses antes. Depois do que passei estudando para ser juíza, ainda levei um choque ao ver: mulher, aqui, não entra.

Alguém lhe disse isso?

Não, mas não entrava. Não admitiam nem sequer a inscrição no concurso. Faziam uma varredura na vida da pessoa.

Havia uma proibição tácita?

Sim, e sem justificativa. É um poder discricionário do tribunal. 

Por que seu pai guardava notas?

Era desembargador, relacionava-se com os professores. Havia pressão. Eu era filha de desembargador que estudava Direito na Universidade Federal. Era muita pressão. Precisava estudar. E ele muito entusiasmado.

Como ele via ter filha juíza?

Quando eu já era juíza, um desembargador me disse: ‘Sabes que teu pai, cada vez que recusavam as mulheres, dizia ?não te preocupa, a primeira vai ser a minha filha?. Ele nunca contou isso para mim.

Seu pai não ficaria orgulhoso?

É, e agora tenho uma filha juíza, né? Acho que todo pai quer que o filho seja melhor do que ele. Até já acho que minha filha é melhor do que eu, ela é quarta geração de magistrados da família.

Saber disso foi impactante?

Foi. Duas coisas que me impactaram foi isso e quando um colega disse que eu era melhor juíza do que meu pai havia sido. Perdi o chão. Ele disse, tu tens mestrado, tu dás aulas, tu escreves livros… Teu pai era um bom juiz, mas não tinha isso. Perdi um pouco meu referencial. Foi um baque. Me lembro dia e hora em que me falaram isso.

Para ela, foi tudo mais fácil?

Sim, foi difícil terem aceito mulheres na magistratura, do a inscrição, e eu me sentia mal, porque diziam ‘aqui tu não és bem vista, não te queremos aqui’. Estudava e criava grupos de estudo. Que mico eu pagaria se me saísse mal. A mulher entra e roda no concurso? Estudei para o concurso sem saber se poderia fazê-lo.

Então, essa restrição às mulheres fez a senhora estudar mais?

Sim, estudar mais e mostrar aos outros que eu era capaz, até para ter o respeito dos colegas. Nem sei se eu queria mesmo fazer o mestrado. Tive de adaptar até meu comportamento, porque pensavam, ‘mas como que uma mulher vai para o Interior, ainda vai namorar um oficial de Justiça… Como vai julgar um crime sexual? Como vai suportar uma cidade’? Entende? Na entrevista, me perguntaram se eu era virgem, imagina o absurdo. Respondi que sim, e era verdade. Isso me atrapalhou, até me arrependi. A mulher sempre foi muito penalizada. Então, comecei a me aproximar do Direito de Família tentando mudar isso.

Depois teve a banca. Como foi?

Deu empate. Mulher pode ser ou mulher não pode ser juíza? Tu vês que coisa louca, né? O voto do desempate foi do desembargador presidente.

A senhora ficou muito ansiosa?

Levaram uma tarde discutindo, ou não mulheres. Fiquei do lado de fora, até terminar a sessão. Na saída, uns evitavam me olhar. Me assustei. Passou um desembargador e disse ‘tu tens condições de ser uma magistrada’. Meu Deus, aí eu soube que havia sido por um voto. Eram 24 desembargadores, e tinha dado 12 a 12. Havia desconforto, porque diziam que as mulheres poderiam passar, mas rodariam no exame oral. A prova oral era realizada no pleno do tribunal, tinha aquele ‘u’ das cadeiras, até foi complicado para mim, porque meu pai foi velado lá. Foi horrível. Mas fiquei sabendo até que chegaram a pensar em reduzir as notas para as mulheres não passarem. Pedi que algumas pessoas assistissem às provas orais e às identificações das provas.

Baixar notas seria um escândalo?

Foi um comentário, ‘quem sabe baixamos’. Um presidente de tribunal uma vez me disse, ‘mulheres, vocês são umas danadas, faz tempo que não deixamos tirarem primeiro lugar’. O que é isso, ‘não deixar mulher tirar primeiro lugar’?

E o exame psicotécnico?

Fui chamada duas vezes para fazer o psicotécnico, eu e a Regina Bollick (também classificada), para renovar a coisa. Essa dificuldade, resistência, acompanhou toda a minha trajetória profissional.

A senhora é a primeira, mas havia também a Regina Bollick?

Fui a primeira por causa da classificação. Fui a sétima. Mas teve gente que iria me dar 10 e me deu 9. Poderia ter sido melhor.

Como foi sua entrada no tribunal?

Entrei lá como datilógrafa. Fui contratada pelo Instituto de Previdência do Estado (IPE) e colocada à disposição do tribunal. Meu pai ficou bravo, porque achava que mulher não deveria trabalhar.

Mas aí há uma contradição. Ele não a queria como a primeira juíza?

Pois é, ele não dizia isso jamais para mim.

Ele mudou seus conceitos?

Havia confronto. Fui fazer Direito, e ele achou o máximo, chorou. Mas, na hora de me inscrever, queria que eu cursasse de manhã, e eu à noite. Ele dizia, ‘imagina estudar à noite’. Me matriculei no último dia por causa dessa discussão. Quase só homens estudavam à noite. Eu argumentava que iria trabalhar, e ele dizia que não precisaria. Fomos juntos para a minha inscrição, ele insistindo para eu fazer de manhã. Aí, consegui emprego no IPE. Eu queria mostrar quem era.

E no trabalho, mais superação?

Fui absolutamente competente. Comecei como datilógrafa sem saber bater à máquina. Era máquina manual, oito páginas, com carbono, eu não dava conta, não tinha fim. Aí, comecei a namorar um colega que me ajudava no serviço (risos). Mas fui galgando no tribunal. Primeiro datilógrafa, depois oficial de gabinete, secretária. Quando me formei, era assessora do presidente do tribunal.

Onde começou como juíza?

Em Ibirubá, a 370 quilômetros de Porto Alegre. Queriam que eu ficasse em Porto Alegre, que o Interior seria pesado para uma moça. Mas fui. Não tinha asfalto nem telefone. Ibirubá me recebeu bem, como uma autoridade. A cidade nunca tinha tido nem juiz, eram atendidos pelo juiz de Cruz Alta. Minha mãe foi comigo por causa da mudança, e todos acharam que era ela a juíza. Diziam, ‘a senhora tem uma filhinha tão engraçadinha’. Me integrei à comunidade. O sexo não fazia diferença. 

Já ouviu ‘só podia ser mulher’?

Fiz um júri de aborto, da parteira da cidade, e eu estava grávida de oito meses. Diziam, como é que uma mulher grávida assim vai fazer o júri? Uma vez, em um caso de estupro, a alegação era de que a menina não era virgem. O advogado achava que a prova era escabrosa. Eu namorava o juiz de Cruz Alta, pai dos meus filhos. O advogado foi falar com ele e explicou que seria constrangedor. Recomendou que ele fizesse a audiência e que eu assinasse. Meu namorado riu, disse que duvidava que eu aceitasse. Na audiência, o advogado estava num constrangimento total, perguntava e se escondia. Muito engraçado. Outra vez, fui pedir remoção de cidade, e o desembargador disse ‘bem que mulher não podia ser juíza mesmo’. Mas eu tinha direito, queria ficar perto do pai do meu filho pequeno.

Alguns casos a marcaram?

Certa vez, um homem queria deixar de pagar pensão porque a ex-mulher tomava pílula. Outra, um homem exigia metade da casa que a ex-mulher construiu sozinha depois que ele a abandonou com cinco filhos. Nunca mandou um tostão e voltou querendo parte do patrimônio porque, legalmente, eram casados. Aí, passei a defender que vale a separação de fato, não a do papel. E tem casos de pensão. Defendo escuta telefônica para descobrir onde o pai enfia o dinheiro dele

Houve outros problemas funcionais?

Quando meu filho mais velho nasceu, não havia licença-maternidade na magistratura. Me deram 30 dias de licença-saúde. Tu acreditas que eu voltei? Me arrependo. Penso: eu tinha direito. Não havia licença-maternidade, até porque não havia mulher na magistratura. Na ocasião, eu não podia dar margem a nada, tinha de ser irretocável, pelo peso de ter aberto a porta para as mulheres. Depois, procurei recuperar a palavra ‘feminismo’, que havia se tornado uma palavra maldita.

Caberia analogia com a CLT?

Sim. Eu teria reivindicado esse direito. Havia omissão no regimento. Eles deveriam ter feito a analogia: não há esse direito aqui, mas, pela CLT, todas têm. Anos depois, quando entrei no tribunal, demorou para que um dos banheiros se tornasse feminino. Queriam que eu chamasse o guarda para ficar na porta quando eu quisesse usá-lo.

A senhora sentiu falta de não ter amamentado mais tempo seu filho?

Amamentei mais minha filha Denise, e ela parece ter ficado um bebê mais saudável. E me sentia como se estivesse de favor lá dentro.

É um arrependimento?

Foi um dos meus grandes arrependimentos. Depois, eu me perguntei: como é que não reivindiquei esse direito? Isso me sensibilizou para quem passa por discriminação e resistência.

Esse peso ainda existe?

Não, porque estou aposentada há cinco anos. Mas passei por muitas coisas. Nunca me promoveram por merecimento, nunca fui convidada para nada. Só fui promovida por antiguidade.

A senhora sofreu boicotes?

Sim. Teve uma época em que todos eram convocados para o tribunal. Um dia, me dei conta de que estavam sendo convocados juízes mais novos do que eu. Meu ex-marido já estava no tribunal, com classificação mais baixa que a minha. E o que mais me doeu foi minha promoção para o Tribunal de Justiça. Eu já era juíza havia 20 anos, era mestre. Na promoção para desembargadora, seria por merecimento ou antiguidade. Pensei, será que o tribunal vai me promover por merecimento e me forçar a guardar minhas bandeirolas? Uma semana depois, fui promovida por antiguidade. Perderam a oportunidade de me calar. Continuei mártir na história. Mas, mesmo por antiguidade, levei sete votos contrários. Isso foi mais grave que a recusa inicial. Para eu entrar no tribunal, um terço dos votos foi contra. Se metade tivesse votado contra mim, eu seria exonerada. Já imaginou que barbaridade?

E a homossexualidade?

Percebi os problemas com os homossexuais em 1995. Fui palestrar em Guarulhos (SP) e decidi falar sobre uniões homossexuais. Não tinha nada sobre isso na literatura jurídica. Escrevi com dificuldade o primeiro livro do Brasil defendendo a união de pessoas do mesmo sexo. Aí, me disseram: ainda bem que foste tu quem falaste. Se fôssemos nós, iriam dizer que somos homossexuais.

A senhora é homossexual?

Metade das pessoas acha que sou homossexual. A outra metade tem certeza.

Perguntam-lhe o motivo para abraçar essa causa?

As pessoas estranham, só se envolvem nas suas causas. O que é do outro não diz respeito. Precisam se colocar no lugar do outro. O Rio Grande do Sul foi pioneiro ao reconhecer direitos homossexuais.

Defender gays foi uma evolução?

Sim. Foi uma maior sensibilização. Porque todos temos preconceitos. Fomos criados assim. O homossexual é desprezado. O tormento pelo qual passam ao se assumir é um troço louco. Os números de violência contra homossexuais e de suicídios são subnotificados. São muito vulneráveis.

Há muito sofrimento?

Você não tem ideia. São sós. Começa pela dificuldade de contar para a família. Por que têm apreço por animais de estimação? Porque entendem que é um amor incondicional.

E o vocábulo homoafetivo?

Eu escrevia meu primeiro livro, 12 anos atrás. Tentei levantar o estigma da expressão “homossexual”. Homossexualidade envolve sexo. Há família sem casamento, sexo sem casamento e procriação sem sexo. Família é vínculo de afeto. Cito Saint-Exupéry, em O Pequeno Príncipe: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Porque as pessoas reagem aos homossexuais?

Por quê?

Por medo. Pensam: aquele lá é mais livre do que eu.

Teve relação homoafetiva?

Não. Mas não me incomoda que as pessoas pensem que sim. Se eu me importasse seria porque não quero ser identificada com um segmento desqualificado, rotulada por algo inferior. Socialmente, o homossexual é visto como ser de segunda, invisível. Mas sou heterossexual. Casei-me cinco vezes, sempre com homens. Mesmo convivendo com homossexuais, nunca desejei uma mulher.

Já foi atraída por mulher?

Não. Já provoquei atração em mulheres.

Houve outros namorados?

Antes do meu primeiro marido, fui noiva duas vezes. Queriam que eu parasse de estudar para casar. Um deles dizia, de forma jocosa: ‘Ela quer ser juíza’. Casei com o primeiro que não me pediu para eu abandonar os meus sonhos.

Acesse o PDF: “Nunca me promoveram por merecimento”, afirma Maria Berenice Dias (Zero Hora – 03/11/2013)    

 

 

 

 

 

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas