09/01/2014 – Debater a regulação da mídia para proteger a infância, por Flávia Piovesan

09 de janeiro, 2014

(O Globo) “Horrível e agonizante” foram as expressões mais utilizadas pela imprensa ao reagir às gravíssimas fraturas na canela sofridas por Anderson Silva, derrotado em nocaute técnico, em luta MMA (Mix Marcial Arts) com o americano Chris Weidman, em 29 de dezembro. O osso da perna de Anderson Silva teria quebrado ao meio, em uma chocante cena de brutalidade.

O episódio lança três indagações: qual deve ser o papel do Estado em relação à prática do MMA? Devem as lutas ser transmitidas pela televisão sem qualquer limitação? Como proteger sobretudo crianças do impacto violento do MMA?

De acordo com a Constituição é dever do Estado fomentar práticas desportivas como direito de cada um. Também é dever do Estado assegurar à criança absoluta prioridade, colocando-a a salvo de toda forma de violência e crueldade, como sujeito de direito em peculiar condição de desenvolvimento. Ao disciplinar a programação de emissoras de televisão, a Constituição ainda consagra, como princípios, a preferência a finalidades educativas, bem como o respeito aos valores da pessoa.

Lutas de MMA têm resultado em morte, lesões graves e permanentes. Registram-se, ao menos, oito casos de morte, em geral causadas por hemorragia cerebral, em virtude de socos na cabeça — como tragicamente atestam as mortes dos lutadores Douglas Dedge, Sam Vasquez, Michael Kirkham e Dustin Jenson.

Desde 1997, em Nova York são proibidas competições do MMA. Na França e na Tailândia, o MMA também é vedado, havendo um forte movimento no Canadá pela proibição.

No Brasil, a luta é permitida, havendo ainda total liberdade para sua exibição pelas emissoras de TV, em qualquer horário. Tragédias recentes, todavia, demonstram o impacto do MMA na banalização da brutalidade, o que tem estimulado o comportamento violento e agressivo de crianças, culminando em vítimas — como ilustram os tristes casos da morte de uma criança de 2 anos, espancada pelos irmãos de 11 e 13 anos, que “brincavam de luta”, em 5 de fevereiro de 2013; e da morte de uma criança de 8 anos, após ter sido agredida em uma “brincadeira de luta” com dois irmãos gêmeos de 12 anos, em 23 de fevereiro de 2013.

Neste contexto, merece atenção o Projeto de Lei 5.534/2009, que objetiva a vedar a transmissão de lutas marciais não olímpicas pelas emissoras de televisão.

Por comando constitucional, é emergencial que crianças sejam protegidas de toda forma de violência e crueldade, por meio, ao menos, da criação de um “horário protegido” na TV. Crianças brasileiras ficam expostas à TV em média cinco horas diárias (dados do Ibope em 2010), superando o tempo que passam na escola (em média três horas e 15 minutos, dados da FGV). Em uma sociedade midiática, essencial é debater a regulação da mídia para proteger a infância, considerando parâmetros internacionais que demandam dos Estados diretrizes apropriadas à proteção da criança contra programação prejudicial ao seu bem-estar. Pesquisas evidenciam que crianças são intensamente impactadas por conteúdos de violência, sendo sua exposição precoce a eles nociva ao seu desenvolvimento, como afirma a Academia Americana de Pediatria.

Por outro lado, além de assegurar a proteção integral às crianças mediante a regulação da mídia, fundamental é fomentar o debate público a respeito da própria luta MMA.

Por unanimidade, o STF, em 26 de maio de 2011, declarou inconstitucional a lei estadual 2.895/98, do Rio de Janeiro, que autorizava a briga de galos, por institucionalizar a prática da crueldade, em violação à Constituição, que veda a submissão de animais a atos de crueldade — o que levou o Supremo a descaracterizar a prática como manifestação cultural. Com o mesmo argumento, o tribunal considerou a farra do boi (que envolve a tourada de corda e a surra de touros, causando, por vezes, a morte de animais), como uma manifestação atentatória à Constituição. Na Espanha, a tradicional tourada foi proibida na região da Catalunha em 2011.

Seria o MMA um esporte ou estaria a institucionalizar a prática da violência? Como sustenta o professor da Universidade de Princeton Anthony Appiah, em recente livro (“The Honor Code: how moral revolutions happen”), o mundo tem testemunhado revoluções morais, que permitem abandonar rituais seculares — como aponta o próprio fim da escravidão.

Afinal, há sempre o direito de transformar práticas culturais, por meio do fortalecimento do senso de dignidade e respeito, em repúdio a brutalidades.

* Flávia Piovesan é professora da PUC/SP e procuradora do estado

Acesse o PDF: Gladiadores do século XXI (O Globo, 09/01/2014)

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