As respostas do direito à violência de gênero

04 de abril, 2014

(Gazeta do Povo, 04/04/2014) No mês em que se celebrou o Dia Internacional da Mulher, o Brasil presenciou notícias revoltantes sobre violência de gênero que se referem tanto a fatos quanto à mentalidade que ainda impera no país. No metrô de São Paulo, uma tentativa de estupro em um trem lotado trouxe à tona os índices de abusos que ocorrem no transporte público da cidade. Foram 29 homens encaminhados à polícia sob acusação de abuso nos vagões só neste ano. No dia 27, uma pesquisa, divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostrou que 58% dos entrevistados concordaram que haveria menos estupros caso as mulheres soubessem se comportar.

Se os casos de violência no metrô geraram indignação, a reação ao que ocorre na esfera privada é bem mais branda: na mesma pesquisa, a maioria dos entrevistados concordou com a afirmação de que, em brigas que ocorrem em casa, quem é de fora não deve se meter. Essa mentalidade ajuda a manter altos os índices de violência doméstica, que é a que faz mais vítimas femininas. Além disso, a culpabilização das agredidas ainda é bastante comum.

Para essas situações, a legislação penal do país possui punições severas. Para o estupro, considerado crime hediondo, o Código Penal prevê pena de seis a dez anos ao agressor; para os casos de violência doméstica, a legislação brasileira é considerada referência internacional. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) estabelece, não apenas medidas punitivas, mas uma política pública que garanta a proteção da mulher. O artigo 8.º institui que essa política deve ser feita “por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais”, que devem integrar áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação; que estudos e pesquisas sobre o assunto devem ser promovidos e que nos meios de comunicação sejam coibidos os estereótipos “que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”.

Outra pesquisa do Ipea, divulgada em 2013, mostra que a criação da lei não reduziu o número de homicídios de mulheres. Em 2006, ano em que a norma entrou em vigor, a média de mortes foi de 5,02 para cada 100 mil mulheres brasileiras. Já em 2011, esse número foi de 5,43.

Para a advogada e ativista do movimento feminista Xênia Mello, “se a Lei Maria da Penha for aplicada somente no aspecto punitivo, está fadada ao fracasso”. Na opinião dela, as medidas preventivas ainda são tímidas e o grande desafio é a falta de orçamento para isso. Uma mudança legislativa que poderia aperfeiçoar o combate à violência seria a criação de rubricas específicas para o tema. Xênia explica que muitas vezes se diz que no orçamento de educação ou de saúde está previsto o direcionamento de uma parcela ao combate à violência doméstica, mas, como os valores não estão especificados, o foco acaba se perdendo no caminho que os recursos fazem até se tornarem ações.

Despreparo

Outro desafio nessa área é a preparação dos próprios operadores do direito que lidam com as vítimas. “É muito importante que todos os profissionais estejam preparados, sem revitimizar, sem criticar a mulher por ter demorado a denunciar”, diz o promotor de Justiça Thiago Pierobom, coordenador dos Núcleos de Direitos Humanos do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. A presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Fernanda Marinela, diz que ainda há preconceito no próprio Judiciário. “A discriminação desses órgãos, que deveriam apoiar, receber e acolher, agrava ainda mais a situação. Na verdade, nós vivemos uma grande crise contra mulheres. O problema não é de normas, é a falta de preparo dos aplicadores e a falta de infraestrutura para a aplicação das leis.”

Sistema de proteção precisa de mais estrutura

Segundo levantamento apresentado no Mapa da Violência 2012, o Paraná é o terceiro estado onde mais se matam mulheres, a média é de 6,3 homicídios para cada 100 mil. Existem apenas dois juizados de violência doméstica e 16 delegacias da mulher por aqui.

Segundo a desembargadora Denise Krüger Pereira, coordenadora da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid), no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher tramitam 17.659 feitos, incluindo ações penais e procedimentos relacionados à matéria, como medidas protetivas de urgência. Questionada, em entrevista por e-mail, se o número de juizados é suficiente, a desembargadora não respondeu à pergunta, mas disse: “Por certo que muito há ainda a ser realizado, mas o Poder Judiciário tem empregado todos os esforços para contribuir, de maneira ímpar, na efetivação e na consagração dos objetivos da Lei Maria da Penha”.

A lei prevê que toda mulher em situação de violência tenha acesso à Defensoria Pública ou à Assistência Judiciária Gratuita. No Paraná a Defensoria Pública ainda é incipiente. “Como discutir atendimento à mulher se a Defensoria como um todo não tem estrutura?”, questiona a advogada Xênia Mello.

O caminho até a Lei Maria da Penha

A edição da Lei 11.340/06, batizada de Lei Maria da Penha, só foi possível após uma série de eventos ao longo das três últimas décadas. Veja como foi:

• Antes da metade dos anos 1980, no Brasil não havia leis que promovessem igualdade de gênero e que protegessem a mulher de atos violentos cometidos por seus parceiros.

• Em 1984, o país se tornou signatário do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres da ONU (Cedaw, da sigla em inglês), primeiro acontecimento importante para o Brasil na área dos direitos das mulheres. 187 países são signatários do Cedaw e, a cada três anos, o comitê convoca reuniões. Nesses encontros são elaborados relatórios que constituem recomendações de leis ou revisão de textos legais aos países que fazem parte do grupo.

• Em 1994, ocorreu a Convenção de Belém do Pará, mais conhecida como Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, adotada pela Assembleia Geral das Organizações dos Estados Americanos. A convenção constitui o primeiro relatório de promoção para emancipação dos direitos da mulher e o repúdio à violência no país.

• Em 2003 foi criada a Secretaria de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, do governo federal. O objetivo do órgão é combater a violência contra mulheres e fazer o atendimento àquelas em situação de violência, em parceria com outros organismos públicos dos três Poderes.

• Em 2006, entrou em vigor a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que tem esse nome em razão da violência que Maria da Penha Maia Fernandes sofreu. Ela ficou paraplégica após ser agredida pelo marido. A lei tem como objetivo dar mais proteção às mulheres que sofrem violência doméstica e familiar e prevê que políticas públicas de combate à violência também sejam instituídas.

Direito comparado

Acordos são principais medidas na Europa

Em alguns países europeus, acordos processuais têm sido utilizados como primeira alternativa de proteção à vítima. O promotor de Justiça Thiago Pierobom, coordenador dos Núcleos de Direitos Humanos do Ministério Público do DF e Territórios, participou de um grupo de estudos sobre as medidas que estão sendo adotadas por Portugal, Espanha, França e Inglaterra, e que deu origem ao livro “Modelos Europeus de Enfrentamento à Violência de Gênero”, lançado no mês passado. Segundo ele, nesses países os acordos têm regras específicas para casos de violência doméstica de modo a não se correr o risco de que sejam vazios ou sigam a lógica dos réus.

No início da persecução, são apresentadas condições ao réu, como participação em um programa de acompanhamento psicossocial e prestação de serviços à comunidade. “A prisão é a última das hipóteses”, explica Pierobom. O promotor considera essas medidas mais eficazes porque tratam do problema imediatamente e não quatro ou cinco anos depois da denúncia, como ocorre no Brasil, em que o réu só é encaminhado para cursos de reeducação depois que a sentença é proferida. Ele destaca ainda que focar na detenção do agressor tem pouca eficácia, pois aqui muitos acabam sendo condenados a regime aberto, o que, na prática, com pouca estrutura para se fiscalizar, seria quase o mesmo que nada. “A punição é importante porque, se não houver, transmitimos que estamos aceitando a violência, mas esse não pode ser o único, nem o mais importante aspecto de enfrentamento”, esclarece o promotor.

1035 feminicídios foram registrados no Paraná entre 2009 e 2011. No mesmo período a taxa de assassinatos de mulheres no Brasil chegou a 16.994. Os índices foram divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em setembro de 2013.

Colaborou Rômulo Ogasavara

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