Comentários a respeito do “Estatuto da Família” – PL 6583/2013, por Fernanda Saboia

03 de junho, 2014

(CFEMEA, 03/06/2014) O conceito de Família definido pelo projeto de lei é o seguinte:

“Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”, tal definição exclui a pluralidade das famílias brasileiras, já reconhecida por doutrinas de Direito, que avançam na interpretação da lei. Existem pelo menos 11 tipos de família, que são: matrimonial, informal, homoafetiva, paralela ou simultânea, poliafetiva, monoparental, anaparental, pluriparental, extensa ou ampliada, substituta, eudemonista. Os tipos de famílias já apreciadas pelo ordenamento jurídico brasileiro são a matrimonial (CF art. 226 § 1 ), a família informal (união estável, CF art. 226 § 3), e família monoparental (CF art. 226 § 4), e conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, tem se reconhecido legalmente e juridicamente a existência das famílias homoafetivas. Por isso mesmo, a definição limitada enunciada pelo Projeto de Lei 6583 do Estatuto da Família mostra que, se aprovado, o PL poderá gerar uma verdadeira insegurança jurídica a todas as famílias que não se enquadram nos limites estreitos de sua definição. Além do mais, tal artigo é inconstitucional, pois a Constituição Federal estabelece como princípio que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

É ainda mais preocupante que tal definição possa influenciar em processos de adoção por casais homoafetivos, que estão em andamento, ou que poderão ocorrer no futuro, impedindo assim que centenas de crianças brasileiras possam sair de abrigos e desfrutar do acolhimento, da estrutura, afeto, educação em lares de famílias homoafetivas.

Recentemente, levantamento feito com dados do Sistema de Informações para a Infância e Juventude, do governo federal, revelou que pais e mães são responsáveis por metade dos casos de violações aos direitos de crianças e adolescentes, como maus-tratos, agressões, abandono e negligência, portanto, não há garantia de que o formato de família homem + mulher seja de fato o mais seguro e mais recomendável a todas as crianças, cada família é única e o Estado Brasileiro deve reconhecer todas elas e não voltar atrás, discriminar e excluir, como propõe o Projeto de Lei 6583/2013 do Estatuto da Família.

O Projeto em questão também institui os Conselhos da Família como órgãos autônomos e permanentes com atribuições de notificar o Ministério Público sobre atos ou fatos que constituam infração administrativa ou penal contra os direitos da família.

As famílias estarão sujeitas a uma verdadeira inquisição para provar que se enquadram nesse conceito. O leque de represálias vai desde notificar à autoridade judiciária os casos de sua competência, solicitar informações de membros de famílias a autoridades públicas até convocar famílias a prestar esclarecimentos.

Dentro das atribuições e deveres do Estado com a família – ora definida no projeto de lei – está a criação de um privilégio no Sistema de Único de Saúde (SUS), quando assegura prioridade absoluta no atendimento da “entidade familiar” defendida no projeto, e sobre isso é importante salientar que a lei do Sistema Único de Saúde prevê a universalidade, a integralidade e a igualdade no acesso às ações e aos serviços de saúde sem quaisquer tipos de preconceitos sendo desnecessário criar privilégios a um grupo específico, já que o direito a saúde é um direito básico e fundamental de todos os cidadãos brasileiros. A má fé dos autores do projeto é visível ao privilegiar determinado tipo de família, já que a organização do SUS é fundada na laicidade. Os ataques ao SUS não são recentes, há uma campanha preconceituosa que atrapalha diversos procedimentos no SUS, como por exemplo: as campanhas de educação e prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, as questões relativas à autonomia e direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o aborto legal.

É ainda preocupante o Art. 6º do PL 6.583, que prevê “assistência prioritária à gravidez na adolescência”, ou seja, dá prioridade à gravidez e não à mulher grávida adolescente, negando à mulher direitos e autonomia sobre o seu corpo, não enfrentando de fato os problemas ocasionados pela gravidez na vida da mulher.

Em conversa realizada por videochat promovido pela Câmara dos Deputados, o relator do Projeto de Lei em questão, Deputado Ronaldo Fonseca (Pros-DF) debateu, no dia 06 de maio de 2014, com internautas, a proposta do Estatuto da Família (PL 6583/13). Questionado sobre a perda de direitos das famílias que não se enquadram no conceito proposto e que já estão formalizadas, o relator respondeu: “sob o ponto de vista da lei, crianças adotadas por casais homoafetivos atualmente não são reconhecidas (…)”. “O que temos é uma interpretação do STF sobre essa questão”, disse Fonseca. “O problema todo é o conceito de família. Se o critério é afetividade, por que não incluir o cachorro, o gato? Não tem afetividade?”. O relator, como se pode constatar, da mesma maneira que o autor da proposição, também não reconhece nem legalmente, nem socialmente, a diversidade das famílias, o que agrava ainda mais a situação.

Ainda sobre o conceito de família, além da Constituição que fala da família no Capítulo VII, temos no ordenamento brasileiro, outras definições já em vigor que poderão sofrer modificações com a aprovação do PL 6583/2013 como: a Lei Maria da Penha, Artigo 5º, II e o Estatuto da Criança, Art. 25 § único.
O projeto de lei 6583/2013 representa um retrocesso sem precedentes, um instrumento legal para negar direitos e não para garanti-los. Está, portanto na contramão dos direitos humanos.

Há, no Congresso Nacional, outros dois Projetos de Lei, PL 2285/2007 e PLS 470/2013. O PL 2285/2007 já possui parecer com relatoria do Deputado Eliseu Padilha (PMDB-RS) favorável ao projeto e encontra-se na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, já o projeto do Senado PLS 470/2013 está aguardando relatoria do Senador João Capiberibe (PSB- AP), contudo, o PL 6583/2013 chama atenção pelo seu conteúdo altamente conservador e de anti-direitos.

A matéria atualmente está sendo apreciada por uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados que tem até o final desta Legislatura para discutir e aprovar o seu parecer em relação ao projeto, quando então deverá ser encaminhado à apreciação do Plenário da Câmara. O autor do projeto, Deputado Anderson Ferreira (PR/PE), a presidência, Deputado Leonardo Picciani (PMDB-RJ) e a relatoria Dep. Ronaldo Fonseca (PROS-DF) têm em comum um perfil altamente conservador, fundamentalista, religioso, anti-direitos, similar à maioria dos parlamentares que a integram. Vai ser, com certeza, um palanque privilegiado para amplificar as causas repressoras e autoritárias em ano de eleições gerais no país.
Brasília, 28 de maio de 2014
*Assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA

 

 

 

 

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