As ‘aventureiras’ que desbravaram o país pela ciência

26 de setembro, 2014

(Jornal da Unicamp, 26/09/2014) A participação das mulheres em expedições científicas no Brasil, nos meados do século passado, foi muito maior do que imaginamos. Esta ideia, embora recorrente na literatura sobre gênero e ciências e sobre história das mulheres, carecia de mais registros dessas “aventureiras”, carência que a historiadora Mariana Moraes de Oliveira Sombrio espera ajudar a suprir com sua tese de doutorado. “Em busca pelo campo: ciências, coleções, gênero e outras histórias sobre mulheres viajantes no Brasil em meados do século XX” é o título da pesquisa que ela desenvolveu sob a orientação da professora Maria Margaret Lopes, junto ao Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp.

Mariana Sombrio vem pesquisando as mulheres cientistas desde a iniciação científica, a partir de um projeto coordenado por sua orientadora no âmbito do Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero. “O projeto da professora Margaret Lopes visava estudar Bertha Lutz, que ficou conhecida na história brasileira por sua militância feminista, mas que era também cientista, faceta pouco abordada – ela tinha os diplomas de botânica e de zoóloga, trabalhando com ciências naturais. No mestrado abordei sua atuação como botânica no Museu Nacional do Rio de Janeiro, seu trabalho no Conselho de Fiscalização de Expedições Artísticas e Científicas do Brasil (CFE) e também a colaboração com seu pai, Adolfo Lutz, na organização de coleções herpetológicas [de sapos e suas classificações].”

A historiadora conta que Bertha Lutz (1894-1976) foi uma das primeiras mulheres brasileiras a ingressar oficialmente em uma instituição científica, aprovada em concurso público para o cargo de “secretário” do Museu Nacional, em 1919.  Com o passar dos anos, deixou esse cargo para assumir o de naturalista, consolidando uma carreira estável e bem-sucedida. Como representante do Museu no Conselho de Fiscalização de Expedições, Bertha Lutz participou do processo de construção da nascente política científica nacional, fiscalizando e licenciando expedições científicas realizadas em território brasileiro.

Foi pesquisando a documentação do CFE, referente ao período de 1933 a 1968, que Mariana Sombrio levantou as fichas de 38 mulheres que solicitaram licenças para expedições, antevendo nesses registros o mote para o seu doutorado: entender as condições, fatores e estratégias com que elas se inseriram nas práticas de campo. “A maioria era de estrangeiras, como americanas do Instituto Smithsonian e da Universidade de Columbia, bem como da Europa, poucas latino-americanas e também brasileiras autônomas (aquelas vinculadas a instituições como Butantan e Manguinhos não precisavam da autorização).”

A autora da tese recorda que o Conselho de Fiscalização de Expedições foi criado por Vargas em 1933, no contexto nacionalista de se proteger os bens da nação, como por exemplo, os patrimônios natural e histórico. “Como antes não havia nenhuma legislação que controlasse a entrada de estrangeiros no país, este Conselho passou a registrar e avaliar os pedidos de licença para expedições, sob a exigência de que os cientistas deixassem duplicatas das amostras que coletassem – plantas, animais, peças de artesanato indígena – para instituições nacionais.”

Segundo a historiadora, as expedicionárias das décadas de 1930 a 1950 conviveram em ambientes majoritariamente masculinos, mas várias delas produziram pesquisas consistentes e estabeleceram relações com a comunidade científica, numa atuação que ia muito além do papel de assistentes, geralmente reservado a elas. “Para saber mais sobre as 38 mulheres, tive que recorrer a outras fontes, sendo que de algumas nada encontrei: desapareceram, ou por que não firmaram carreiras sólidas, ou por que eram apenas viajantes e não publicaram artigos. Por isso, acabei valorizando as mulheres que mantiveram relações estreitas com instituições científicas brasileiras e tiveram uma produção significativa.”

Mariana identificou um grupo formado por antropólogas em sua maioria, mas também por botânicas, zoólogas, geólogas, astrônomas, linguistas e arqueólogas atuando em pesquisas de campo no país. “Encontrei cientistas brasileiras autônomas como Maria Alice Fonseca de Moura, etnóloga que fazia pesquisa de antropologia física para seu doutorado e pediu licença para visitar tribos no Mato Grosso. Seu objetivo era produzir moldes de gesso de mãos, pés e face dos indígenas. Vale lembrar que a antropologia surgiu como se fosse um ramo da medicina, comparando características físicas entre etnias, antes de se tornar uma disciplina com viés mais sociocultural.”

Três cientistas estrangeiras mereceram cada qual um capítulo da tese, por terem feito do Brasil seus campos privilegiados de pesquisa: Wanda Hanke, austríaca com formação em medicina, direito e filosofia, que decidiu realizar o sonho da etnologia aos 40 anos de idade, estudando indígenas do Brasil, Paraguai, Bolívia e Argentina, até morrer na cidade de Benjamin Constant (AM); a zoóloga americana Doris Cochram, que veio sozinha para estudar sapos, mas com a ajuda preciosa de Bertha Lutz; e Betty Meggers, arqueóloga também americana que, invertendo os papéis, conquistou fama com uma produção que superou a do marido também arqueólogo. Publicamos um resumo das trajetórias dessas três mulheres nestas páginas.

O casamento e o sobrenome

Em relação às trajetórias das cientistas expedicionárias, Mariana Sombrio identificou particularidades como a influência do casamento, que em sua opinião fazia muita diferença, para o bem e para o mal. “Algumas que se casavam com cientistas continuavam pesquisando e acompanhando o marido nas expedições, tornando-se suas principais colaboradoras; para outras, a carreira acabava, pois precisavam cuidar da casa e dos filhos. Por outro lado, Doris Cochran e as brasileiras Bertha Lutz e Heloísa Alberto Torres nunca se casaram, o que é uma característica de algumas das mulheres que se destacam no meio científico – mas isso não era regra, visto que Wanda Hanke, viúva, deixou um filho na Áustria e Betty Meggers também era casada.”

A pesquisadora observa que as expedicionárias eram em maioria brancas e de classe média – o que indica um recorte de classe e de raça dentro das instituições de pesquisa – e, também, que havia outros impedimentos além do matrimônio. “Enquanto aos homens era facilitado viajar para o curso superior na Europa, para as mulheres era difícil ingressar mesmo nas faculdades daqui. A educação feminina no Brasil só passou a ser mais valorizada a partir da década de 30, com a criação de universidades e faculdades de filosofia, ciências, letras e profissionalização do magistério. É também nos anos 30 que as salas de aula mistas tornam-se mais comuns.”

Outra particularidade realçada pela historiadora diz respeito à mudança de sobrenome no casamento, que podia fazer com que a mulher que publicasse artigos científicos deixasse de ser encontrada. “Maria Alice Fonseca de Moura, ao pedir autorização para a expedição ao Mato Grosso, assinou todo o dossiê com esse nome. Quando voltou, assinou um único documento com um sobrenome diferente: Pessoa. Demorei a perceber por que não encontrava artigos ou referências a ela: Maria Alice viajou com um auxiliar, Arnaldo Salazar Pessoa, com quem certamente se casou, passando a adotar seu sobrenome. Ao notar essa mudança consegui encontrar trabalhos que ela realizou após retornar da expedição.”

Diários sem lamentações

Uma preocupação da autora da tese foi resgatar aspectos do dia a dia das cientistas e, para isso, trabalhou com os diários de campo das americanas Doris Cochram e Betty Meggers, que localizou no Instituto Smithsonian (onde fez doutorado sanduíche), e com as cartas de Wanda Hanke, depositadas no Museu Paranaense. “A suposta fragilidade das mulheres para suportar expedições é alvo de tratados desde o século 19. Mas as dificuldades ou rejeições por estarem no campo não ficam explícitas nos documentos; nenhuma delas se lamenta pela condição de mulher. Há apenas comentários breves, como de Betty Meggers sobre a surpresa dos mateiros que a viam a cavalo nas fazendas do Marajó, acampando e caçando para comer; ou de Wanda Hanke sobre agressões, uma delas física, quando trabalhou no Parque Nacional do Paraguai.”

Em suas considerações finais, Mariana Sombrio retoma o argumento de que mais mulheres do que imaginamos participavam destas atividades de campo, embora a historiografia tradicional da ciência pouco trate delas, ressaltando grandes figuras masculinas como Carlos Chagas ou Adolfo Lutz. “Até hoje a ciência é uma prática elitista. É preciso relativizar a ideia romântica das expedições científicas como de aventureiros se embrenhando e enfrentando os perigos da selva, que ainda influencia o imaginário popular sobre o que é fazer ciências e contribui inclusive para reforçar um caráter masculinizante para essas práticas. É uma atividade como outras, dependente de muitas pessoas; e quando se olha para os documentos, elas aparecem.”

Betty Meggers, que fez seu nome

O terceiro capítulo da tese de Mariana Sombrio é sobre Betty Meggers (1921-2012), uma arqueóloga que conquistou fama e veio ao Brasil pela primeira vez em 1948, trabalhando por um ano na Amazônia, ao lado do marido e também arqueólogo Clifford Evans – ambos desenvolvendo suas teses de doutorado pela Universidade de Columbia. “É um caso bastante peculiar porque Betty se sobrepôs ao renome de Evans nas ciências, não por ser mulher, mas porque sua pesquisa foi mais ampla e suas teorias mais impactantes. O caso é oposto ao de outro requerente de uma licença para expedição, Claude Lévi-Strauss, que contou o tempo todo com a colaboração da mulher, Dina, que praticamente desapareceu da literatura decorrente da expedição ao Brasil frente à notoriedade adquirida pelo marido: mereceu menção apenas em nota de rodapé do livro ‘Tristes Trópicos’.”

A historiadora conta que Betty Meggers, ao contrário, nunca adotou o sobrenome do cônjuge e também não trabalhava apenas com ele, publicando e colaborando com outros cientistas, além de realizar pesquisas independentes, coletando principalmente cacos de cerâmica. “Essa postura foi determinante para seu sucesso na carreira. Mais do que a tradicional assistente esposa, ela era indiscutivelmente a cientista da expedição, tornando-se conhecida nos círculos científicos por seu nome próprio. Era participante ativa nas escavações. Pioneira no campo da arqueologia, suas contribuições abriram caminho para o desenvolvimento de muitas pesquisas sobre culturas pré-históricas na América do Sul.”

Segundo Mariana, o livro mais notável de Betty Meggers, “Amazônia: A Ilusão de um Paraíso”, provém de suas pesquisas no Brasil e se tornou referência para pesquisadores das áreas de arqueologia e antropologia, sendo também citado em alguns estudos sobre problemas ambientais da Amazônia – a apresentação das edições brasileira e mexicana foi escrita por Darcy Ribeiro. “Além das informações sobre arqueologia amazônica que se mantêm preservadas, a leitura da narrativa de Betty Meggers é muito prazerosa. Algumas vezes, seus relatos diários eram complementados por pequenos comentários nas últimas linhas ou no pé das páginas de seu marido, Clifford Evans, mas quem relatava a expedição era mesmo ela.”

A autora da tese explica que o casal passou a maior tempo recolhendo cacos de cerâmica, ossos e outros artefatos arqueológicos, buscando pesquisar e elucidar a história de habitação dos povos indígenas na região do Baixo Amazonas. “Os trabalhos de campo e as coleções foram e continuam sendo aspectos essenciais de disciplinas como a arqueologia, que se conformaram transformando, teórica e concretamente, espaços, cacos e ossos em áreas e objetos científicos. Foi a partir da análise, descrição e catalogação dos artefatos que Betty Meggers construiu suas teorias sobre a adaptação do homem aos trópicos.”

Chamou a atenção de Mariana Sombrio os muitos nomes de brasileiros que aparecem nas narrativas da expedicionária americana, desvelando toda a estrutura de trabalho coletivo em torno dos pesquisadores. “São inúmeros os anônimos que contribuíram com as escavações, viagens, carregando os artefatos, indicando-lhes locais de trabalho e fornecendo condições para que a viagem acontecesse. Para historiadores sociais e antropólogos, conhecer o cotidiano desses processos e o envolvimento dos pesquisadores com a sociedade é algo de muito valor. É a história da construção de teorias científicas em sua forma primeira, com a participação social inclusa.”

Doris Cochram, a ‘frog lady’

De acordo com Mariana Sombrio, o arquivo pessoal de Doris Cochram (1898-1968), guardado no Instituto Smithsonian, em Washington, reúne uma série de correspondências, artigos, manuscritos, desenhos, fotos e inúmeros outros documentos que ajudam a reconstruir sua história. Há um livro não publicado, datilografado, escrito a partir do diário de campo onde registrou as atividades e impressões de sua primeira expedição ao Brasil, em 1935. “É possível perceber que a viagem ao Brasil era um desejo longamente cultivado e permeado pelo imaginário do encontro da pesquisadora com uma natureza exótica e cheia de mistérios a serem revelados. Palavras de admiração sobre as paisagens naturais e espécimes, tão diferentes dos que ela conhecia na América do Norte, são comuns em seu diário.”

Doris Cochram veio sozinha, mas tendo um contato importante no país, o que na opinião da autora da tese fazia muita diferença. “Ela conseguiu facilmente a licença do Conselho de Fiscalização e foi recebida no porto por Bertha Lutz, que ainda encontrou um lugar para que morasse e a acompanhou em algumas viagens. Na falta da anfitriã, acompanhava Doris um assistente de campo chamado Joaquim Venâncio, negro e iletrado, que foi fundamental para as pesquisas tanto de Adolfo Lutz como de Bertha, já que era quem de fato ia coletar os sapos que depois a cientista catalogava e estudava.”

Mariana Sombrio informa que Doris Cochran era especialista em herpetologia, tendo como suas principais áreas de interesse os répteis e anfíbios da América Central e do Sul. Ela fez duas viagens de campo ao Brasil, em 1935 e 1962, e visitou também outros países da América Latina, como Haiti e Colômbia. Essas expedições renderam trabalhos importantes para a área, incluindo as publicações: “The Frogs of Southeastern Brazil” (Os sapos da região Sudeste do Brasil, 1955) e “The Herpetology of Hispaniola” (1941). No decorrer de suas pesquisas, ela nomeou aproximadamente 100 novas espécies e seis novos gêneros.

Além dos textos científicos, Doris Cochram publicou um grande número de artigos populares e livros sobre herpetologia, sendo o mais importante “Living Amphibians of the World” (1961), que foi traduzido para seis línguas. “Ela também concedia frequentemente entrevistas a rádios e falava publicamente sobre répteis e anfíbios em clubes nos Estados Unidos. As muitas reportagens publicadas sobre a cientista apontam sua fama e o reconhecimento que recebia da comunidade científica americana. A quantidade de artigos de divulgação publicados e guardados em seu arquivo pessoal é impressionante.”

Wanda Hanke, a ‘meio maluca’

A viajante e pesquisadora austríaca Wanda Hanke (1893-1958) passou os últimos 25 anos de sua vida se dedicando ao estudo de grupos indígenas da América do Sul. Para a historiadora Mariana Sombrio, é o exemplo da expedicionária que não tinha dinheiro, nem vínculo com instituições, nem marido para acompanhá-la. Em ofício que data de julho de 1933, a cientista pede não apenas a licença, mas o custeio pelo governo brasileiro da expedição a regiões desconhecidas dos rios Xingu, Tapajós e afluentes, com o propósito de pesquisas “psycho-ethno-sociológicas”, linguísticas, astronômicas, meteorológicas e cartográficas.

O primeiro parecer do Conselho de Fiscalização de Expedições foi favorável, mas o pedido de licença acabou recusado por conta de um documento confidencial do governo, baseado em informações do Consulado de Viena que colocavam em dúvida a idoneidade de Wanda Hanke: ela foi internada por dois anos em um sanatório especial para perder o vício da morfina; e, segundo sua neta, sofria de depressão e já havia tentado suicídio. “A alegação de problemas psiquiátricos era absolutamente incomum para se negar uma licença. Mas Wanda veio mesmo assim. E na tese observo que o governo brasileiro, se não apoiava, também não conseguia exercer uma fiscalização tão efetiva sobre as atividades dos estrangeiros no país”, diz Mariana.

Viajando sozinha, a pesquisadora austríaca contratava mateiros para ajudar no transporte de equipamentos e na coleta de utensílios de uso cotidiano dos indígenas ou mesmo peças arqueológicas. “Também tirava muitas fotografias e vendia suas coleções para financiar as expedições – tradição que vinha do século 19, mas já condenada pelo governo brasileiro, que buscava cercear o comércio ilegal de artefatos indígenas e espécimes biológicos. Ela acabou estabelecendo um vínculo estreito com o Museu Paranaense, de Curitiba, parceria decorrente de um problema com as duplicatas coletadas pelos expedicionários: o Conselho de Fiscalização alegava que iria distribuí-las para instituições brasileiras, mas na prática ficavam quase sempre no Museu Nacional (RJ).”

Mariana Sombrio afirma que Wanda Hanke ocupou uma posição marginal no campo antropológico de sua época, o que atribui ao fato de ter se inserido na comunidade científica como “coletora de campo”, assim como à sua visão eurocêntrica, aos conflitos institucionais e à falta de um treinamento oficial em antropologia. “Mesmo que sua produção científica não tenha sido tão impactante nos debates antropológicos de então, as compilações de dados, registros de línguas, as coleções, o acervo iconográfico e as peças que entregou a diversos museus constituem hoje uma importante fonte sobre a história dos povos indígenas da América do Sul.”

Até encontrar as cartas de Wanda Hanke no Museu Paranaense, em Curitiba, a historiadora pensou que seria impossível resgatar aspectos da trajetória de uma cientista desvinculada de qualquer instituição e que ainda era tida como “meio maluca”. “Suas cartas e narrativas deixam transparecer uma personalidade forte, determinada e cheia de si. Os esforços que empregou para realizar sua pesquisa etnológica, assim como os resultados que obteve, são bastante impressionantes, ainda mais estando sozinha, fora da lei, defendendo causas e sofrendo violências. E, afinal, todas as mulheres que viajassem sozinhas fazendo pesquisa pelo interior do Brasil, naquela época, corriam o risco de ser consideradas ‘meio malucas’.”

Luiz Sugimoto

Acesse no site de origem: As ‘aventureiras’ que desbravaram o país pela ciência (Jornal da Unicamp, 26/09/2014)

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