Ausência do tema da violência de gênero na corrida eleitoral é sintoma do descaso sobre as pautas das mulheres

03 de outubro, 2014

(Débora Prado/Agência Patrícia Galvão, 03/10/2014) A violência doméstica e sexual contra as mulheres é um fenômeno de extrema gravidade, que coloca em risco mais da metade da população do País, as 103,8 milhões de brasileiras contabilizadas na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2013, do IBGE. Calcada na desigualdade de gênero, a violência contra a mulher assume a forma de diversos crimes graves, como homicídios, estupros, torturas, cárceres privados e agressões constantes, conforme apontam diversas pesquisas (ver box).

Ainda, a cena desses crimes costuma ser o espaço doméstico, onde as agressões físicas e verbais permeiam relações ditas de afeto, perpetuando a cultura da violência e a violação dos direitos humanos das mulheres entre gerações.

Alheia à gravidade do problema e à dimensão da parcela da população brasileira vitimizada, porém, a corrida eleitoral em 2014 foi marcada até a reta final do primeiro turno pela ausência do debate sobre o enfrentamento à violência contra as mulheres, segundo as fontes ouvidas pela Agência Patrícia Galvão.

“Paradoxalmente, em uma eleição em que temos três candidatas mulheres, com duas delas com possibilidades concretas de vencer, o tema das violações de gênero não entrou no debate eleitoral”, frisa a advogada e presidente da organização Themis – Gênero, Justiça e Cidadania, Denise Dora.

Agenda das mulheres é ignorada

Para a advogada, tanto as candidatas mulheres como a mídia perdem a oportunidade de discutir o diagnóstico e a superação da desigualdade de gênero existente. Essa ausência é sintoma e prova desta desigualdade, que alimenta a invisibilidade das pautas das mulheres em uma corrida eleitoral em que o voto feminino pode definir o resultado da disputa.

Denise Dora compara o processo eleitoral brasileiro com a eleição do presidente Barack Obama nos Estados Unidos, em 2008, para ressaltar a invisibilidade. “Na primeira eleição do Obama a questão racial marcou muito, houve todo um debate sobre se ter um candidato negro era superação das desigualdades ou não. O mesmo não acontece no Brasil, onde não aparece conexão dos debates e campanhas com o fato de as principais candidatas à Presidência serem mulheres”, destaca.

“Sequer aparece no debate qual o tipo de barreira que elas mesmas enfrentaram na vida. A Marina falou das dificuldades que teve por ser pobre, por ter ficado doente, e a Dilma, por ter sido presa política; mas ninguém traz à tona as barreiras enfrentadas pelas mulheres na política. Elas poderiam mostrar que nem todo mundo tem os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Isso tinha que aparecer, como a questão racial apareceu na eleição do Obama”, defende.

Discriminação no cerne do problema

O reconhecimento das desigualdades que estão no fundamento das relações sociais e as discriminações que elam geram,  explica a advogada, é essencial para o fortalecimento da política de enfrentamento à violência, uma vez que são justamente as desigualdades que autorizam a maior parte das violações dos direitos humanos das mulheres.

Este enfrentamento, segundo a especialista, exige políticas e ações partindo tanto do Estado quanto de outros atores na sociedade, como a mídia. “Como é que a mídia no seu discurso sobre a violência pode contribuir para que ela se reduza? Qual é a participação da cultura nisso – de filmes, vídeos, novelas, da literatura? Qual é a participação das empresas? Digamos que 90% dos homens que participam das relações violentas no papel de agressores trabalham em algum lugar, batem na mulher no final do dia e na manhã seguinte vão trabalhar como se nada tivesse acontecido. Essa empresa tem alguma responsabilidade em relação a isso?”, exemplifica.

Além disso, a radialista, feminista e ambientalista Denise Viola lembra que essa é uma política pública que não diz respeito só as mulheres, pois se trata da construção de uma sociedade melhor como um todo. “A violência traz impactos para a vida física, psicológica e afetiva, e muitas vezes econômica também, de milhares de mulheres. Traz impactos negativos para as crianças que convivem com a violência dentro de casa. É responsável por perda de produtividade, pela diminuição de anos vividos, aumenta a tendência ao suicídio entre as mulheres e gasta-se muito do dinheiro público para remediar as consequências dessa grave violação”, aponta.

Para se desconstruir a cultura que alimenta essa forma de violência e trabalhar a prevenção, destaca a radialista, é preciso promover justamente um debate maior com a população. “No período que antecede as eleições é muito comum ouvir propostas vagas – como cidadania, sociedade igualitária, sociedade sustentável, justiça. Mas de que justiça, de que segurança estamos falando? Pode não ser a mesma para mim e para você. E no que diz respeito à violência contra as mulheres, ninguém vai dizer que é a favor, mas também não dizem como as propostas de prevenção e enfrentamento vão se viabilizar”, afirma.

O caminho, segundo a advogada da Themis Denise Dora, já está traçado: “A política de enfrentamento à violência contra as mulheres está estruturada em termos institucionais: tem uma lei importante com uma concepção muito boa, que é a Lei Maria da Penha, tem uma reforma no Poder Judiciário em curso, e esta é uma pauta prioritária na maioria dos Conselhos e Secretarias de Políticas para as Mulheres em vários Estados e em nível federal. Os órgãos de Segurança Pública, que resistem mais a estabelecer esse tema como parte de suas agendas, começam também a fazer isso. Mas, termos uma política estruturada do ponto de vista institucional não significa que tenhamos uma boa política, porque precisamos mais do que isso. A gente precisa pensar como essa política dialoga com outros elementos da sociedade no campo da cultura, da educação e do trabalho”, conclui.

Pesquisas evidenciam a gravidade do problema

Dados da última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que o número total de estupros registrados em 2012 subiu 19,3% em relação ao ano anterior, atingindo 50,6 mil casos – ou seja, quase seis denúncias a cada hora.

Com uma taxa de 4,4 assassinatos em 100 mil mulheres, o Brasil também está entre os países com maior índice de homicídios femininos: ocupa a sétima posição em um ranking de 84 nações, segundo dados do Mapa da Violência 2012 (Cebela/Flacso). Entre 1980 e 2010, mais de 92 mil mulheres foram assassinadas, sendo 43,7 mil só na última década – ou seja, em média, a cada 2 horas uma brasileira foi morta em condições violentas.

Nos primeiros seis meses de 2014, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 realizou 265.351 atendimentos, sendo que as denúncias de violência corresponderam a 11% dos registros – ou seja, foram reportados 30.625 casos – somente por essa via em seis meses. Em 94% dos casos, o autor da agressão foi o parceiro, ex ou um familiar da vítima.

E, apesar de ser um crime e grave violação de direitos humanos, a violência segue vitimando milhares de brasileiras reiteradamente: 77% das mulheres em situação de violência sofrem agressões semanal ou diariamente. Os dados mostram ainda que violência doméstica também atinge os filhos com frequência: em 64,50% os filhos presenciaram a violência e, em outros 17,73%, além de presenciar, também sofreram agressões.

Não à toa, a pesquisa Percepção da sociedade sobre a violência e assassinatos de mulheres, realizada pelo Data Popular e Instituto Patrícia Galvão, revelou significativa preocupação da sociedade com a violência doméstica e os assassinatos de mulheres pelos parceiros ou ex-parceiros no Brasil. Para 70% da população, a mulher sofre mais violência dentro de casa do que em espaços públicos no Brasil.

Os dados revelam ainda que o problema está presente no cotidiano da maior parte dos brasileiros: entre os entrevistados de ambos os sexos e todas as classes sociais, 54% conhecem uma mulher que já foi agredida por um parceiro e 56% conhecem um homem que já agrediu uma parceira. E 86% concordam que a agressão contra a mulher deve ser denunciada à Polícia, demonstrando que o enfrentamento a esta forma de violência tem o respaldo da população.

 

Saiba mais: Cobertura exclusiva do Instituto Patrícia Galvão – Mulheres nas Eleições 2014

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