Fórum Fale sem Medo: violência contra as mulheres aparece já nos primeiros relacionamentos e avança no mundo virtual

08 de dezembro, 2014

(Débora Prado, Agência Patrícia Galvão) A segunda edição do Fórum Fale sem Medo trouxe um alerta para os atores envolvidos no enfrentamento à discriminação e violência contra as mulheres: a violência doméstica se perpetua entre gerações, aparece já nos primeiros relacionamentos entre jovens e se expande para o mundo virtual, colocando, muitas vezes, as novas tecnologias a serviço dessas violações.

A experiência de especialistas de diferentes áreas reunidos no evento – promovido pelo Instituto Avon no âmbito da campanha mundial “16 dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher” –  reforçou o cenário captado na pesquisa lançada no Fórum: um levantamento encomendado pelo instituto ao Data Popular mostrou que um terço das mais de mil mulheres com idade entre 16 e 24 anos já foi xingada ou impedida de usar determinada roupa, 51% já sofreram ameaças, foram seguidas pelo ex, ou este ficou enviando mensagens ou ainda espalhando boatos sobre a mulher quando ela decidiu terminar o relacionamento. Uma em cada três jovens também já foi proibida de conversar virtualmente com amigos, sofreu invasão da conta de alguma das redes sociais utilizadas e até mesmo amizades virtuais foram excluídas pelo parceiro.

Os gestores, pesquisadores, promotores, jornalistas, ativistas e especialistas presentes destacaram, por sua vez, que é preciso debater com os jovens e adolescentes quais são os papéis sociais de gênero e como eles podem alimentar relações violentas, para desnaturalizar as várias formas de violência contra as mulheres que acontecem cotidianamente.

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A pesquisadora do Departamento de Antropologia da USP Beatriz Accioly explica que a violência de gênero está associada a expectativas criadas na sociedade a partir de  construções do que representa o masculino e feminino, que, carregadas de desigualdades, podem estimular violações dos direitos e autonomia das mulheres. “O pornô de vingança, por exemplo, pressupõe que a exposição da sexualidade fere a mulher, renega sua sexualidade”, exemplifica.

A naturalização de supostos papéis de homens e mulheres faz com que boa parte das violências sejam reproduzidas sem que sejam percebidas como violências.

“Quando grupos discriminados, como as mulheres, os negros e as negras ocupam espaços que até tempos atrás não estavam destinados a eles ‘socialmente’, o rompimento dessa expectativa social gera muita violência, que chega também ao extremo do físico, mas que é muito mais cotidiana do que se pensa e, por isso, precisamos falar também da violência psicológica, do assedio cotidiano sofrido”, frisa a psicóloga Daniela Rozados, que integra o Grupo PoliGen de Estudos de Gênero da Politécnica/USP.

Feminicídio

Outras violências, infelizmente, são mais explícitas e chegam ao extremo de crimes contra a vida em relacionamentos entre jovens. De acordo com a promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) Silvia Chakian, na sua atuação diária com frequência aparecem casos em que meninas de 15,16 ou 17 anos são vítimas de feminicídio –  o assassinato de mulheres pela condição de ser mulher, motivado muitas vezes ódio, o desprezo ou o sentimento de perda da propriedade sobre as mulheres em sociedades marcadas pela desigualdade de gênero.

“É muito triste, mas por vezes o namoro, a relação entre dois jovens, vai parar no Tribunal  do Júri”, lamenta a promotora, que é também  coordenadora do Gevid, o Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do MPSP. “Muitas vezes, o que está em jogo ali é o direito ao não – o direito da mulher dizer não a um relacionamento, não a uma relação sexual naquele momento ou daquela forma”, explica.

Segundo a promotora, em muitos casos de agressões e ameaças contra mulheres menores de idade os autores dos crimes também são jovens e, com isso, o caso vai parar na Vara da Infância e Juventude e não nas varas especializadas na aplicação da Lei Maria da Penha – o que pode ser um problema para coibir a repetição da violência.

“Infelizmente, nas Varas da Infância ainda há uma resistência em aplicar a Lei Maria da Penha. Com isso, muitas vezes, é dada a remissão, que é uma espécie de ‘perdão’, e o adolescente vai embora sem passar por nenhum trabalho de reflexão sobre ciclo da violência e com a mensagem de que aquele crime não é tão grave quanto um assalto ou um latrocínio, por exemplo”, justifica.

Nesse cenário, o adolescente pode reproduzir o comportamento violento naquele ou em outros relacionamentos, alerta a operadora do direito.

Porno de vingança

A promotora aponta ainda que, com o aumento do uso de novas tecnologias, espaços como as redes sociais e celulares também podem ser usados para controle do corpo e da sexualidade da mulher desde muito cedo.

“A prova de amor que os homens exigiam de mulheres  antigamente, que era a virgindade, agora é a senha do Facebook ou gravar cenas de sexo que depois podem ser usadas para ameaçar aquela pessoa”, exemplifica.

Foi o que aconteceu com a jornalista Rose Leonel, que compartilhou sua história durante o Fórum: ao decidir romper um relacionamento de quatro anos, o ex-namorado de Rose não só divulgou fotos íntimas dela tiradas durante a relação, como também realizou montagens com seu rosto em cenas de sexo e publicou as imagens na internet como se fossem anúncios de prostituição, fornecendo o celular da própria Rose e do seu filho, então adolescente, como contato.

A ação do ex foi amparada pela reprovação social que as fotos causaram que, baseada justamente em estereótipos de gênero, culpabilizaram a própria vítima pela violência e perseguição sofrida.

A jornalista, assim, perdeu emprego, o convívio do filho, que optou por mudar de país, e enfrentou anos de dor e sofrimento. Seu ex, por outro lado, diante da lacuna existente na legislação em relação a esses crimes, foi condenado por ter cometido um crime contra honra. Sua condenação teve impacto muito mais simbólico do que prático, uma vez que a pena determinada pelo Sistema de Justiça foi de uma indenização de 30 mil reais, aponta Rose.

Atualmente, a jornalista, que fundou a ONG Marias da Internet, atua dando apoio terapêutico e orientações jurídicas para vítimas de crimes como o que sofreu.

Lacuna legislativa e culpabilização da vítima

Em casos de pornô vingança como a sofrida por Rose Leonel, o promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Mario Higuchi considera que o mais adequado seria processar o autor do crime por lesão corporal, e não por crime contra a honra.

“A saúde psicológica da vítima fica completamente comprometida e é fácil comprovar isso com um laudo. A Lei Maria da Penha também é perfeitamente aplicável, mas, a maioria dos tribunais ainda caracteriza como crime contra a honra, em que a pena pode ser de multa”, indica o promotor que é titular da Coordenadoria Estadual de Combate aos Crimes Cibernéticos do MPMG.

Em sentido semelhante, a professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas Marta Rodriguez de Assis Machado destaca que nos casos de crime contra a honra não há a perspectiva de gênero, a ação penal é privada, ou seja, deve ser custeada pela vítima, uma vez que nem sempre a Defensoria Pública está estruturada e sensibilizada para atuar na garantia de direitos da vítima e não do réu.

O aumento numérico de casos denunciados e a gravidade a que podem chegar têm demandado respostas dos sistemas de Segurança e Justiça: em novembro de 2013 duas adolescentes, uma de Veranópolis (RS) e outra de Parnaíba (PI),  cometeram suicídio após descobrirem que fotos e vídeos seus foram compartilhados.

Nesse contexto, os operadores do direito avaliam que o caminho mais seguro para o processamento desses crimes seria criação de um tipo penal específico para essa conduta.

Além da tipificação, segundo a professora Marta Rodriguez, é preciso também debater as representações de gênero nos tribunais brasileiros.

“Eu quero citar um caso do TJMG, em que  o desembargador Francisco Batista de Abreu, da 16ª Câmara Cível, reduziu a punição de um homem condenado por divulgar fotos da ex de R$ 100 mil para R$ 5 mil, alegando que ‘quem ousa posar daquela forma e naquelas circunstâncias tem um conceito moral diferenciado’. Infelizmente, coisas desse tipo ainda acontecem no Brasil, então não basta ter o tipo penal, os papéis de gênero precisam ser debatidos, porque muitas vezes ainda é a conduta das mulheres que foram vítimas de violência que vai para o banco dos réus”, frisa a professora, que é também pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Outro ponto essencial nesse enfrentamento é debater esses papéis também com os jovens por meio de ações e políticas públicas que envolvam a educação e a mídia, para disseminar valores de igualdade e respeito e mostrar que é papel de toda a sociedade enfrentar as discriminações, evitando que a vítima seja alvo de nova violência ao ser culpada pelo crime que sofreu.

A jornalista Bárbara Lopes, que integra a área de juventude da ONG Ação Educativa, que oferece apoio e capacitação a jovens e educadores, conta que no trabalho com adolescentes é muito comum ouvir, quando há casos de divulgação de vídeos sem autorização das mulheres, frases como “as meninas estão confiando demais nos moleques” ou “são muito burras”, o que não só reforça estereotipo de gênero, mas também a idéia de que essas violências são apenas questões individuais, e não um problema social. “A mensagem por trás desses comentários é que a menina que tem que se cuidar, quando enfrentar esse tipo de violência é uma responsabilidade é coletiva”, ressalta.

Confira alguns dados da pesquisa (ou clique aqui para acessar o documento na íntegra)

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