Rosiska Darcy aborda desigualdades de gênero no mundo do trabalho

06 de dezembro, 2014

(O Globo, 06/12/2014) A tsunami de lama que invadiu o país fez com que passasse despercebido o registro de uma revolução subterrânea resultante da soma de milhões de decisões individuais que está mexendo nas estruturas básicas da sociedade brasileira.

A pesquisa Saúde Brasil do Ministério da Saúde constatou que as mulheres estão tendo menos filhos e mais tarde. Apesar de o país nunca ter tratado com seriedade o planejamento familiar, inventaram seus próprios caminhos para fazer o que queriam, não esperaram pelo Estado. Quem quer desenvolver uma vocação, construir uma carreira ou simplesmente amadurecer antes de assumir a responsabilidade por outra vida vem exercendo essa liberdade de escolha que há 30 anos seria impensável ou condenada como uma aberração.

No entanto, nessa liberdade coloque-se um bemol: ela se exerce, muitas vezes, num quadro de coerção material. Não há surpresa em que as mulheres decidam assim quando o quadro institucional que acolhe os mais frágeis — e são as mulheres que se ocupam de crianças e idosos — é precário, a exemplo das creches, e inexistente, quando se trata do apoio aos que envelhecem. Quando 38% das famílias são chefiadas por mulheres e, em tantas outras, elas contribuem decisivamente para melhorar o padrão de vida familiar. Uma frase obsoleta desapareceu das conversas masculinas: “Tenho mulher e filhos para sustentar.” O homem provedor saiu do ar.

A maternidade tardia e a escolha de ter menos filhos são respostas que as mulheres estão dando a uma sociedade que se permitiu incluí-las no mercado de trabalho sem que nenhuma política coerente pensasse a acolhida, na sua ausência, dos que delas sempre dependeram. Para os governos, a maioria das empresas e até mesmo as famílias, a vida privada não existe como questão de interesse público. Se a vida privada é ocultada como problema, descartada em seu valor social, tudo isso é herança da invisibilidade das mulheres.

Midas ao contrário, tudo que elas tocam vira nada. Essa zona de sombra que o feminino habita é tão antiga quanto o Gênesis ou teria sido risível o mito do nascimento de Eva de uma costela de Adão, invertendo a realidade da gestação humana em que os homens nascem das mulheres. Se foi possível anular essa evidência, bem mais fácil é ocultar a vida familiar, a energia física e psíquica, o tempo que ela demanda.

E, no entanto, transformar o minúsculo animal que é um bebê recém-nascido em ser humano é um ato civilizatório por excelência, ainda que não tenha merecido até recentemente nas historias da civilização uma única linha. Note-se que os historiadores, como todos os seres humanos, foram iniciados à sua própria humanidade e à humanidade de seus semelhantes por uma mulher. A sociedade que põe um preço em todas as coisas torna invisível o que não anuncia seu preço.

A esquizofrenia vigente no mundo do trabalho resume-se assim: as mulheres são bem-vindas com a condição que não queiram os mesmos salários que os homens, de preferência não engravidem e que façam como eles, cujos problemas familiares são delegados às suas esposas e companheiras. Como são elas mesmas as esposas e companheiras, o que se lhes pede é a quadratura do círculo.

Sair desse impasse que desqualifica as mulheres requer audácia. Empresas pioneiras começam a experimentar a reengenharia do tempo de homens e mulheres, reservando para ambos o direito à vida privada, não como um favor, mas como um direito e um valor. Rara é a empresa que não anuncia a sustentabilidade como valor, palavra mágica que conota uma responsabilidade social quase nunca praticada. Já que assumem compromisso com a sustentabilidade terão que reconhecer que o ventre materno é o primeiro meio ambiente que os humanos conhecem e que a poluição da vida familiar pelo estresse atenta contra as vidas sustentáveis.

Mudam-se os tempos, as vontades… e o tempo. As mudanças demográficas exigem novas relações de trabalho e relançam o debate sobre o bem-estar e a responsabilidade moral. A longevidade que aumenta na população brasileira acrescenta mais um desafio à tarefa cotidiana de proteger as crianças. Trata-se agora de assistir também aos que envelhecem. Crianças e idosos não são descartáveis. Uma progressiva perda de espessura humana nas relações familiares está reduzindo todos à mera condição de mão de obra.

O poeta Manoel de Barros deixou uma fortuna de sabedoria no seu “O livro das ingnorãças”. Garimpo nele um diamante que vem a propósito: “Não sei mais calcular a cor das horas. As coisas me ampliaram para menos.”

Rosiska Darcy de Oliveira é escritora

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