Após série de mortes, Índia repensa esterilizações em massa como política de planejamento familiar

18 de janeiro, 2015

(Opera Mundi, 18/01/2015) Procedimentos  que causaram as mortes de pelo menos 13 mulheres em novembro de 2014 são parte de política adotada em 1952 por pressão de agências e organismos internacionais como o Banco Mundial e a Fundação Ford

Quando notícias sobre as mortes de mulheres esterilizadas em um acampamento médico de Takhatpur, no distrito de Bilaspur, começaram a surgir em 10 de novembro de 2014, funcionários do departamento de saúde do estado indiano de Chhattisgarh chamaram as 83 mulheres que estiveram no acampamento aos hospitais da sede do distrito. Vieram então as notícias de que mulheres de outros acampamentos também estavam se sentindo mal. Dentro de horas, iniciou-se a operação para juntar todas as 137 mulheres esterilizadas em quatro acampamentos médicos realizados naquele fim de semana.

Mulheres no centro de atendimento à maternidade do distrito de Shivpuri, na Índia, em 2010; política de esterilização em massa é aplicada no país desde 1952 (Foto: DFID-UK/Flickr)

A administração começou a especular sobre a causa das mortes. Conseguiram a lista de remédios fornecidos às mulheres após a cirurgia em todos os quatro campos: diazepam, ibuprofeno, ciprofloxacino e iodopovidona. “Descobrimos que o ciprofloxacino havia sido fabricado em outubro de 2014. Isto o tornava suspeito e, portanto, resolvemos testá-lo”, diz Ayyaj Fakirbhai Tamboli, diretor da Missão Nacional de Saúde Rural (NRHM, na sigla em inglês) em Chhattisgarh.

Testes preliminares com os comprimidos de ciprofloxacino mostraram contaminação por fosfato de zinco, frequentemente usado como veneno para ratos. O governo do estado disse que laboratórios confirmaram a presença do veneno, mas não tornou os relatórios públicos. Os proprietários dos dois laboratórios farmacêuticos que produziram os medicamentos foram presos por homicídio culposo.

A causa havia sido encontrada. O veneno que matou as mulheres havia sido descoberto. Ou, pelo menos, era o que parecia.

Dularin Patel, de 27 anos, foi uma das 13 mulheres que morreram após a cirurgia de esterilização. “Ela estava bem até a segunda-feira à tarde, quando nos visitou. Ela havia tomado remédios no sábado à noite e duas vezes no domingo”, disse Gorabai, mãe de Dularin. “Começou a vomitar a partir das quatro da tarde. Então, recebemos uma chamada de seus sogros, que vivem a 70 quilômetros daqui, dizendo que o funcionário do serviço de saúde havia pedido que ela fosse até o hospital. Às três da manhã da terça-feira, ela estava no Instituto de Ciências Médicas de Chhattisgarh”. Na tarde daquela terça-feira, Dularin foi declarada morta.

Resultados preliminares dos exames post-mortem das vítimas foram enviados a agências de investigação. Eles não foram divulgados ao público, mas um funcionário sênior do serviço de saúde disse à Down to Earth que Dularin havia desenvolvido septicemia. “Ela tinha uma inflamação no peritônio, a membrana que forma o revestimento da cavidade abdominal. Havia meio litro de um grosso fluido amarelado em seus pulmões e focos sépticos foram encontrados em todos os órgãos”, disse a fonte, pedindo não ter seu nome divulgado. “É um caso óbvio de infecção pós-operatória”.

A DTE teve acesso a sete relatórios post-mortem. Cinco deles são referentes a mulheres que morreram no dia 11 de novembro, um de uma vítima do dia 12 de novembro e, outro, do dia 13. Todos os cinco relatórios do primeiro dia acusavam infecção no abdômen. O relatório do segundo dia acusava alta incidência de infecções no corpo. O do terceiro dia, choque séptico.

“Isto mostra que a infecção continuou crescendo entre as mulheres que foram esterilizadas no dia 8 de novembro. Os resultados mostram claramente que as mulheres foram infectadas por instrumentos contaminados”, diz um especialista forense da Escola Médica Lady Hardinge, em Délhi.

O fosfato de zinco está ligado à falência renal. “Não vimos nenhum caso de falência renal nos exames post-mortem”, informou a fonte.

Embora as fontes oficiais afirmem que a culpa é dos medicamentos, elas se recusam a fornecer mais detalhes, dizendo que a questão está sendo tratada pela Justiça. A única informação que se dispõem a compartilhar é a de que dois laboratórios confirmaram que os medicamentos estavam contaminados com fosfato de zinco. Perguntamos aos oficiais sobre uma linha alternativa de investigação. “O que temos parece bastante conclusivo para nós. Não estamos trabalhando com outra teoria”, disse Tamboli, da NRHM.

“A tragédia ocorreu por múltiplas razões. Em primeiro lugar, as cirurgias foram conduzidas sob condições absolutamente inseguras, o que as deixou medicamente vulneráveis. Em seguida, foram dados medicamentos contaminados a elas”, diz T. Sundararaman, diretor-fundador do Centro de Pesquisa em Saúde do Estado de Chhattisgarh.  “Todos estes fatores deveriam ser investigados por uma equipe independente. O Estado deveria ser considerado culpado por seus múltiplos erros”.

A maneira como as cirurgias foram conduzidas apresenta um quadro perturbador. O cirurgião R. K. Gupta realizou as operações como se estivesse em uma linha de montagem. Ele já tinha recebido um prêmio do governo estatal em janeiro de 2014 pelo recorde de 50 mil cirurgias realizadas.

Na Índia, a ênfase na esterilização tem suas origens em uma política seguida desde 1952, quando o país se tornou o primeiro a adotar um programa oficial de planejamento familiar. O primeiro acampamento deste tipo foi organizado em 1970, em Kerala, para a realização de vasectomias. Outras partes do país vieram a seguir e, entre 1970 e 1971, cerca de 1,3 milhões de vasectomias foram realizadas na Índia. Na conferência da Associação de Médicos na Índia em janeiro de 1976, a então primeira-ministra Indira Gandhi disse: “Devemos agir de maneira decisiva para diminuir a taxa de natalidade… Alguns direitos pessoais devem ser temporariamente suspensos em prol dos direitos humanos da nação”. Quase 6,5 milhões de homens foram esterilizados até 1977.

A primeira-ministra teve de pagar o preço após 1.774 mortes relacionadas às esterilizações entre 1975 e 1977 seu partido acabou perdendo as eleições seguintes. “A lição foi: não toque nos homens. E então, o foco foi voltado para as mulheres”, diz Mohan Rao, professor de saúde pública na Universidade Jawaharlal Nehru, em Délhi.

O departamento de planejamento familiar também foi renomeado como departamento para o bem-estar da família, para que soasse mais aceitável. Após uma série de esterilizações femininas e irregularidades nas operações, o ministério emitiu diretrizes para a esterilização. Até o final da década de 1990, o gasto com planejamento familiar foi maior do que o orçamento para a saúde. “É uma prioridade desproporcional”, diz Rao. “Melhorias na saúde em geral também ajudarão a contralar as taxas de natalidade. Pessoas mais saudáveis, especialmente crianças, indicam uma baixa taxa de mortalidade infantil, o que leva as pessoas a terem menos filhos”.

Quando o orçamento de cada estado é decidido pela Missão Nacional de Saúde Rural e o dinheiro chega até a região, metade do ano já se passou. Como resultado, a maioria dos acampamentos é realizada em um curto período entre outubro e fevereiro. A tática dos acampamentos está sendo questionada após a tragédia de Bilaspur nas novas diretrizes para esterilização, a serem lançadas em 2015.

Mulheres em assembleia no estado de Chhattisgarh, onde aconteceram 13 mulheres morreram em novembro de 2014 após esterilizações em massa (Foto: Asian Development Bank / Flickr)

Agências internacionais também desempenharam um papel no estabelecimento da política indiana. Em 1952, a Fundação Ford deu 9 milhões de dólares à Índia para planejamento familiar. Quando Indira Gandhi falou sobre a superposição de direitos nacionais sobre direitos pessoais, ela seguia instruções do Banco Mundial para a redução da população indiana, a fim de que o país pudesse alimentar seus famintos.

Entre 2007 e 2012, o planejamento familiar indiano era financiado principalmente pela USAID, agência dos EUA de ajuda internacional, pelo Banco Mundial e pelo Departamento de Desenvolvimento Internacional do governo britânico. Eles contribuíam com um bilhão de dólares. O financiamento foi duramente criticado em 2012, após mulheres esterilizadas em um acampamento do distrito de Araria, em Bihar, reclamarem das irregularidades. Atualmente, o planejamento familiar é financiado apenas pelo governo indiano.

Mas agências internacionais continuam a influenciar políticas de saúde em países pobres. Em novembro de 2014, a empresa farmacêutica Pfizer e as ONGs Fundação Bill & Melinda Gates e Fundação para o Fundo de Investimento das Crianças anunciaram planos de expansão para os contraceptivos injetáveis Sayana Press. Esta é apenas uma parte do projeto de um bilhão de dólares da Fundação Bill & Melinda Gates para controle populacional. O Sayana Press é feito com os mesmos componentes que o anticoncepcional Depo Provera, que foi criticado por seus efeitos colaterais. “Os efeitos colaterais do Depo Provera incluem sangramento, amenorreia, depressão, ganho de peso, sensibilidade nos seios, osteoporose, dano ao fígado e câncer”, diz Subha Sri, da Common Health, organização indiana para a saúde maternal e neonatal e por abortos seguros.

A Fundação Bill & Melinda Gates patrocina testes na África, a fim de averiguar se o medicamento é prático o suficiente para que as mulheres possam injetá-los nelas mesmas. “Isto torna a coisa mais assustadora. A autoadministração aumenta as chances de transmissão de HIV”, diz Sri.

Analistas acreditam que as razões pelas quais agências internacionais estão interessadas na população dos países em desenvolvimento são muito mais profundas. “As políticas populacionais colocam a culpa pela pobreza, pelas mudanças climáticas e pelas crises alimentares sobre os pobres, sugerindo que modelos de desenvolvimento que beneficiam o capital corporativo e que estão intensificando a pobreza e a desigualdade não precisam ser alterados”, diz Kalpana Wilson, professora no Instituto de Gênero da London School of Economics.

Desde a tragédia em Chhattisgarh, médicos, legisladores e especialistas em saúde pública têm tentado encontrar uma maneira de evitar que o problema se repita. Solicitando que as cirurgias sejam transferidas de acampamentos médicos para instalações próprias, a ex-parlamentar indiana Brinda Karat diz: “A escolha por se reproduzir, pelo método contraceptivo e pelo momento de usá-lo devem ser do indivíduo. A esterilização, como escolha individual, deve ser fornecida em uma instalação médica adequada, ao longo do ano todo”.

O consenso entre os especialistas é de que, a longo prazo, a Índia precisará de uma revisão de seu programa de planejamento familiar. Uma exigência é o fim de incentivos monetários para despertar o interesse por práticas de planejamento familiar pouco seguras. O estabelecimento de metas de esterilização deve acabar. Em vez de acampamentos, programas de planejamento devem estar disponíveis como parte de serviços regulares de saúde. Precisa-se garantir que as mulheres não sejam as únicas visadas pelos programas de esterilização e que métodos contraceptivos sejam disponibilizados para as famílias. Eles demandam que seja feita justiça às mulheres de Bilaspur, e que suas necessidades médicas sejam atendidas. Também sugerem que médicos do Estado sejam treinados para realizar tais cirurgias em condições seguras. Tendo em vista o papel dos medicamentos contaminados, especialistas sugerem que as políticas de aquisição de remédios também sejam revistas.

A taxa de crescimento populacional na Índia diminuiu e especialistas acreditam que a ansiedade atual em relação ao crescimento populacional é infundada. De acordo com o censo da Índia, o crescimento populacional na década entre 2001 e 2011 diminuiu para 17,6%. Ele permaneceu acima de 21% nas décadas anteriores.

“O centro do debate sobre planejamento familiar mudou. Agora as mulheres procuram serviços de planejamento familiar voluntariamente. Elas não querem ter mais do que dois ou três filhos. Temos que fazer com que suas demandas sejam atendidas”, diz T. Sundararaman, diretor-fundador do Centro Estadual de Pesquisa em Saúde de Chhattisgarh.

Jashodhara Dasgupta, coordenador da Aliança Nacional para a Saúde Materna e Direitos Humanos, diz que é decepcionante que a Índia ainda não tenha sido capaz de fornecer direitos humanos básicos às mulheres. Uma promessa de que isso ocorreria foi feita há 20 anos. Em 1994, em uma conferência das Nações Unidas sobre população e desenvolvimento realizada em Cairo, no Egito, um plano de ação de 20 anos foi adotado. Este plano solicitava que os países considerassem as necessidades das mulheres em direitos humanos, em vez de seguir cegamente demandas demográficas ao planejar estratégias de controle populacional.

Alternativas incluem a esterilização masculina, que quase não recebe atenção. Para além do fato de que as mulheres são vistas como alvo fácil para a esterilização, a conscientização também é um problema. “A vasectomia é cercada de lendas, como a impotência. O governo deveria criar campanhas de conscientização e motivar mais homens a optar por ela”, diz Sri.

Jyotsna Singh; com tradução de Henrique Mendes

Nota da Redação: Matéria original publicada no site da Down to Earth, revista indiana com foco em saúde, ciência e meio ambiente.

Acesse no site de origem: Após série de mortes, Índia repensa esterilizações em massa como política de planejamento familiar (Opera Mundi, 18/01/2015)

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