Vencendo papéis de gênero: meninas que programam

09 de fevereiro, 2015

(Portal Fórum, 09/02/2015) Apesar da extrema desigualdade de gênero que caracteriza o mercado da tecnologia tanto no Brasil como no mundo, meninas e mulheres começam a furar o bloqueio; conheça a história da norte-americana Cindy Hoang, que decidiu ignorar as limitações impostas pelo machismo e apostar na carreira de programadora

Cindy Hoang é uma jovem norte-americana de 18 anos que vive em Sacramento, na Califórnia. No ano passado, ela ganhou visibilidade ao escrever, para o jornal The Huffington Post, um artigo intitulado “Como é ser uma menina que gosta de programação” (a versão em português foi publicada pelo Brasil Post).

No texto, a estudante fala sobre a desigualdade de gênero no campo da tecnologia e as dificuldades de meninas e mulheres em atuar na área – segundo Cindy, os “papéis de gênero” são tão disseminados e arraigados no imaginário coletivo, que elas se sentem intimidadas e desencorajadas só por serem do sexo feminino. Conta, também, sua experiência no Girls Who Code, um programa voltado a garotas do ensino médio que busca diminuir a distância entre elas o mercado tech. A iniciativa, idealizada pela advogada Reshma Saujani, tem o apoio de gigantes do setor, como Google, Twitter e E-Bay. Outros projetos semelhantes fazem ainda um recorte racial: é o caso do Black Girls Code, dedicado a ensinar meninas negras, de idades entre 7 e 17 anos, a programar e lidar com tecnologia digital.

A baixíssima presença de mulheres no campo da tecnologia é realidade no mundo. Levantamento de dados sobre diversidade divulgado pelo Facebook no ano passado aponta que apenas 15% dos funcionários da empresa em postos relacionados à tecnologia são mulheres. No LinkedIn, elas representam somente 17% dos empregados da área. Para reverter o quadro, as duas companhias decidiram lançar, na última sexta-feira (6), um projeto conjunto que busca elevar o número de mulheres estudantes de engenharia e ciência da computação, a fim de que ocupem mais vagas no Vale do Silício, hoje dominado por homens.

No Brasil, a situação não é diferente. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2009, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 20% dos profissionais da área de Tecnologia da Informação são mulheres. De um total, por exemplo, de 22.377 programadores, à época somente 3.725 eram do sexo feminino.

A raiz dessa profunda desigualdade, para Cindy, está no padrão sexista conforme o qual opera a sociedade. “Até quando crianças, somos ensinados que meninas devem brincar com Barbies e pôneis, enquanto os meninos brincam com caminhões e robôs”, afirma. “Quando ouvimos o termo ‘engenheiro’, pensamos em homens construindo grandes estruturas e operando máquinas para fazer acontecer. É raro pensarmos em mulheres fazendo o mesmo.”

Leia, na íntegra, a entrevista de Cindy à Fórum:

Cindy Hoang, de 18 anos (Foto: Reprodução/Facebook)

Cindy Hoang, de 18 anos (Foto: Reprodução/Facebook)

Fórum – Como e quando você se envolveu com tecnologia?

Cindy Hoang – Ainda me lembro do dia em que descobri como instalar um jogo no computador –  foi quando pude tocar um pela primeira vez, e acho que isso me conduziu a essa área. Isso aconteceu quando eu estava no Jardim de Infância. Quando estava na 5ª série, comecei a jogar online, o que também me marcou muito. Eu estava tão intrigada e fascinada pela maneira com que podia me conectar a outras pessoas online e jogar com ela o mesmo jogo e ao mesmo tempo… Então, quando entrei para a 7ª série, descobri como criar meu próprio servidor exclusivo para um jogo chamado MapleStory. Ele demandava tantos códigos e conexões que até hoje me pergunto como consegui fazê-lo funcionar. Era muito prático e podia customizar literalmente qualquer coisa no jogo. E o mais importante: funcionava online. Pedi para alguns amigos testarem comigo e nos divertimos muito sendo os mestres do jogo. Dali em diante, apenas continuei procurando por oportunidades relacionadas ao campo da tecnologia e programação. Encontrei o iD Tech e o Girls Who Code – ambos mudaram minha vida.

Fórum – Quando as áreas de tecnologia e engenharia se tornaram, de fato, possíveis carreiras para você?

Hoang – Desde quando eu era criança, sonhava em ser médica. Era o perfeito estereótipo asiático – tinha que ir bem na escola e me tornar médica, porque essa é uma carreira que dá dinheiro e te dá o poder de curar as pessoas. Foi lá pela 5ª série que as coisas realmente começaram a mudar para mim. Compramos um computador com Windows Vista em uma liquidação da Black Friday, e aquilo foi muito empolgante. Quando comecei a usá-lo, senti como se minha vida estivesse completa. Meus pais sempre me pediam para ajudá-los, porque eu era muito rápida quando se tratava de algo relacionado à área tech. Me interessei tanto por computadores e tecnologia que dizia para todo mundo: “Não sei o que quero ser quando crescer, só sei que quero fazer algo com computadores.”

Fórum – Por que acha que meninas não se interessam muito por essa área?

Hoang – Meninas, em sua maioria, não se vêem sentadas em frente a computadores o dia todo ou construindo coisas. As pessoas normalmente associam “construção” ao universo masculino e “cozinha” ao universo feminino. É o que acontece. Até quando crianças, somos ensinados que meninas devem brincar com Barbies e pôneis, enquanto os meninos brincam com caminhões e robôs. Quando ouvimos o termo “engenheiro”, pensamos em homens construindo grandes estruturas e operando máquinas para fazer acontecer. É raro pensarmos em mulheres fazendo o mesmo. Quando estava recrutando o pessoal para entrar em meu clube de programação, perdi as contas de quantas garotas passaram por mim e disseram: “Não sou inteligente ou boa o suficiente”. Existe essa falta de segurança e confiança da parte das meninas no que diz respeito à tecnologia. Vemos os garotos ansiosos para consertar coisas, como o projetor ou algum problema que apareceu na tela de computador, e pensamos que nós não podemos fazê-lo. A verdade é que qualquer um pode fazer qualquer coisa que coloca na cabeça. Atualmente, com a tecnologia tão proeminente, há muitas oportunidades para todos neste campo.

Fórum – Quando as meninas se interessam pela área, quais são as dificuldades que encontram?

Hoang – As meninas que se interessam provavelmente enfrentarão muito preconceito e intimidação. Tive uma série de experiências em que me senti desconfortável apenas por estar no ambiente. As pessoas encaram, julgam e dizem coisas. É muito comum, não apenas no campo da tecnologia, mas em qualquer um, as meninas e mulheres encontrarem essas barreiras. Mas, como acontece com todas as dificuldades, você a supera mantendo-se focada e dando 110% de esforço.

Fórum – No artigo que escreveu para o jornal The Huffington Post, você menciona situações em que se sentiu intimidade ou obrigada a se provar somente por ser uma menina. Esse tipo de situação ainda acontece com você?

Hoang – Acontece o tempo todo! Não necessariamente porque sou uma menina, no entanto. É mais porque as pessoas me olham de um certo jeito ou falam coisas sobre mim por trás. Nessas horas, continuo sendo somente quem sou e fazendo o meu melhor, independente de minhas habilidades. Provavelmente passarei por esses momentos pelo resto da minha vida, me sentindo intimidada, mas a coisa certa a se fazer é ir em frente e não me deixar abater.

Fórum – Pode, por favor, contar mais sobre sua experiência no Girls Who Code? Como o projeto te ajudou?

Hoang – Eu poderia escrever um livro sobre minha experiência no Girls Who Code. O plano era estar com outras vinte meninas, oito horas por dia, cinco dias por semana, por oito semanas, com o objetivo de aprender programação. A verdade é que foi muito mais do que isso. Encontrei uma família de meninas, que sempre estarão ao meu lado, e criamos memórias que jamais morrerão. Nos apaixonamos pela tecnologia quando percebemos que a tínhamos em nossas mãos, quando visitamos aquelas empresas incríveis, e até quando estávamos assustadas diante daqueles bugsenormes. Girls Who Code fez muito mais do que me ajudar. Girls Who Code me inspirou e me deu esperança para o futuro. Eles me empoderaram com educação e habilidades para correr atrás do meu sonho e auxiliar outras meninas a fazer o mesmo.

Fórum – Na sua avaliação, projetos como o Girls Who Code e o Technovation Challenge aproximam meninas do campo da tecnologia?

Hoang – Sim, claro! Esses programas são focados em tecnologia e em trazer as minorias para perto dela. Acho que precisamos de mais projetos assim para preparar as próximas gerações para algo melhor. O campo da tecnologia é uma indústria em expansão, que precisa de mais mulheres e menos conflitos.

Fórum – Por que, na sua opinião, meninas e mulheres precisam estar mais presentes nesse mercado?

Hoang – O mercado ganharia em diversidade, e meninas e mulheres seriam mais respeitadas. É uma via de duas mãos. Ao longo da história, o gênero feminino foi sempre retratado como o mais fraco, frágil e emocional. Masculinidade em mulheres é tão desaprovada quanto feminilidade em homens. Mas a tecnologia não faz mulheres deixarem de ser mulheres, ou cozinhar não faz homens deixarem de ser homens. Cada indivíduo tem seus próprios sonhos e habilidades. Não deveria haver limites para ninguém. Quanto mais ativas forem meninas e mulheres nessa área, mais as minorias se inspirarão a quebrar os paradigmas e perseguir seus sonhos.

Anna Beatriz Anjos

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