Mulheres de Quênia e Etiópia obtêm autonomia financeira e subvertem papéis de gênero por meio do atletismo

20 de março, 2015

(Opera Mundi, 20/03/2015) Fevereiro de 2014. Uma caravana de corredores cruza a linha de chegada da Meia Maratona de Barcelona. Quase 22 quilômetros depois, os participantes voltam caminhando para casa. Para a maioria deles, inclusive para os vencedores, as consequências da corrida não terão grande importância. No entanto, para um pequeno grupo de pessoas, terminar a prova entre os primeiros transforma a vida delas e a de muitos que as cercam.

Esse é o caso das atletas com passaporte queniano ou etíope. A corrida de grande distância em seus países está conseguindo remover as constrições sociais dos papéis de gênero atribuídos a homens e mulheres. Na Etiópia e no Quênia, o machismo pode ser combatido com tênis de corrida. O dinheiro obtido nas pistas traz às mulheres a estabilidade econômica que lhes permite ser independentes para decidir como administrar suas contas, e, consequentemente, seu futuro. Ao voltar para casa depois da competição, a situação mudou: as mulheres levam o sustento e os maridos se encarregam das tarefas domésticas.

Um documentário mostra esta incipiente revolução. O atletismo como veículo de emancipação feminina está retratado no filme “01:05:12. Una carrera de fondo” (em tradução livre, “01:05:12. Uma corrida de longa distância”), dirigido pelos espanhóis Javier Triana e Ruben San Bruno. Nas terras áridas do Quênia e da Etiópia, o protagonismo é das atletas vencedoras em grandes competições internacionais. O roteiro revela como grandes passadas e medalhas estão removendo os obstáculos que freiam a igualdade de gênero. “É apenas o começo, porém alguma coisa começa a mudar”, assegura Triana.

A primeira parte do filme é rodada em Iten, uma pequena cidade no oeste do Quênia, onde o panorama tem mudado nos últimos anos. Em suas estradas avermelhadas não se veem apenas homens preparando-se para a competição. Floresceram hotéis e cabeleireiros cujos donos e empregados não atendem somente os homens, e os garotos não são os únicos que falam de suas perspectivas de futuro com esperança.

“Meu empresário me dizia: ‘Por que você divide seu dinheiro com seu namorado?’. Na Alemanha, eu me dei conta de que para algumas mulheres, quando o dinheiro é seu, ele é apenas seu. Elas podem se sustentar sozinhas.” Esse é o relato de Agnes Kiprop, que resume o novo espírito pelo qual o Quênia atravessa. Nas prateleiras de sua casa, não há mais espaço para troféus. Diante da câmera ela relata como viajar lhe abriu a mente, mudando sua atitude no dia a dia. “Era o meu dinheiro, porém meu marido queria decidir como usá-lo. Eu pagava o colégio, a casa, enquanto ele ficava bêbado… Assim eu decidi ficar sozinha com meus filhos.”

Um dos entrevistados admite que alguma coisa está mudando: “O homem sempre teve a obrigação de ir à caça e defender a família, e a mulher se encarregava de tudo relacionado ao lar”. Até agora. As famílias, apesar de resistirem, “deram-se conta de que ganham mais se a mulher é atleta do que com o dote que os noivos lhes dariam se elas se casassem após se formarem no colégio”, conta um missionário responsável por um dos colégios mais destacados da região. Um fator que não é trivial: a soma da educação e do atletismo se converteu em uma perfeita combinação.

O fato de as meninas poderem receber uma educação, contam os entrevistados, permite-lhes combinar sua profissão esportista com estudos que sejam garantia de futuro quando a idade lhes obrigar a deixar as competições. “Uma educação melhor para as mulheres é garantia de um futuro melhor”, afirma Lornah, atleta aposentada de 40 anos, entre as vitrines com seus ouros mundiais. Sua maior satisfação, entretanto, procede de algo intangível: ela se transformou em inspiração para muitas mulheres de Iten, que agora oferece mais oportunidades com um centro de treinamento construído graças aos sucessos que as pistas lhe deram.

Porém, além da educação, há outro pilar que permitiu germinar essa revolução: o turismo esportista. A chegada de estrangeiros à região foi decisiva para melhorar a infraestrutura de treinamento e também funciona como trampolim para a rede de comércio local que gira em torno desse fenômeno, desde quitandas e hotéis até salões de beleza.  Apesar de o lado positivo não residir apenas na chegada de pessoas de todas as partes do mundo, há também a saída de locais para competição em outros países.

Entre as mulheres que aparecem no documentário, muitas são divorciadas ou simplesmente decidiram não se casar, uma ideia que no Quênia ou na Etiópia ainda soa insólita. Dessa forma, o atletismo lhes brinda uma liberdade e um sentido muito amplo: podem marcar seu futuro profissional e começam a decidir sua posição no campo profissional sem obstáculos. Apesar disso, o machismo continua latente. “Os homens parecem aceitar a nova configuração, mas quando começam a elaborar, deixam transparecer as contradições. É algo levará muitos anos”, acrescenta Javier Triana.

A história de Feyse Tedese é outra. Junto com seu marido, com quem troca olhares de cumplicidade, ela conta como ele decidiu deixar suas próprias ambições de lado e concentrar-se em ajudá-la a triunfar. A residência do casal fica próxima a Adis Abeba, a capital da Etiópia, um centro urbano onde se percebe a metamorfose social e as folhas de pagamento são mais generosas.

Nessa cidade convivem duas referências para quem dedica sua vida ao atletismo. Uma delas é a etíope Derartu Tulu, ouro nos 10 mil metros em Barcelona-1992, o primeiro para uma mulher africana negra em Jogos Olímpicos. Com o dinheiro obtido, ela está construindo um centro e um hotel. Está lá também Haile Gebrselassie, um dos rostos mais conhecidos das corridas de longa distância, transformado em empresário bem-sucedido e candidato à presidência da Etiópia. “Das 1.200 pessoas que eu emprego, 55% são mulheres. Por isso meu negócio vai bem”, diz esboçando um sorriso.

O documentário “01:05:12. Una carrera de fondo” nasceu da experiência de Javier Triana como correspondente da agência Efe na África Subsaariana. “Viajei várias vezes para Iten, interessei-me pela mudança que está acontecendo lá e comecei a fazer entrevistas para ver se elas se sustentavam.” E se sustentaram. Os realizadores esperam que até 2017 o documentário passe pelos circuitos de diversos festivais pelo mundo. “Chegará o momento em que você triunfará no que quiser”, admoesta uma das atletas antes de fechar a cena.

Hugo Domínguez

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