Maquiar ator branco com tinta preta é uma forma de racismo? Sim, por Rebeca Campos Ferreira

12 de maio, 2015

(Época, 12/05/2015) Não se trata de teatro ou arte, tampouco de uma crítica teatral. Trata-se de racismo no teatro. E racismo é crime, teatro é arte. Eles não podem estar juntos.

O blackface é uma técnica de maquiagem teatral, na qual pessoas brancas pintam-se de negras para imitá-las de forma caricata, o que reforça características físicas, estereotipando-as com o intuito de fazer piadas. Uma ferramenta utilizada no teatro, no cinema e, lamentavelmente, muito comum no carnaval.

A historicidade do blackface não é a absolvição do racismo que carrega, ao contrário, é justamente o que permite compreender o quão ofensivo é e o motivo pelo qual deve ser combatido nos palcos contemporâneos. Quando se pensa na origem histórica desta prática, vê-se que o racismo sempre a embasou.

Chamando-o de “máscara do negro” da Commedia Dell’Arte, passando ou não por Othello de Shakespeare, até consolidar-se nos shows de menestréis estadunidenses do início do século XIX, o blackface foi amplamente utilizado por comediantes que tiravam risos do seu público-alvo – a aristocracia branca escravocrata – ao representar a negritude de forma distorcida, exagerada e jocosa. Na segunda metade do século XX, o blackface caiu em desuso e se transformou em instrumento de combate ao racismo.

Por isso, é com tristeza e indignação que se vê tal prática retornar aos palcos, tirar risos que naturalizam o que está nela impregnado: o racismo. O blackface, voltando ao cenário e trazendo retratos caricatos de indivíduos negros, reforça estereótipos e discrimina. Quando se analisa o enredo da peça “A Mulher do Trem” – um Brasil pequeno burguês e bonachão, tendo a sala de visitas de uma família de classe média como cenário, no qual vão e vêm personagens tipo-ideais – os problemas ficam ainda mais latentes: atores brancos representam atores negros, carregando o  tom com o deboche e o escárnio. Vale citar: o blackface é utilizado na representação dos empregados.

Após tantas lutas do movimento negro, das atrizes e atores negros em um cenário de protagonismo ainda em construção, o retorno do blackface é, no mínimo, um retrocesso perverso. Seria cômico, mas é trágico.

Embora não seja o objeto da presente reflexão, a representação dos negros nos palcos deve ser pensada. Por que não um ator negro? Por que negros não podem se representar? Por que quando ocupam estes espaços ainda o fazem em determinados papéis que reforçam estigmas? Vide novelas, nas quais a mulher negra é a empregada doméstica ou a passista da escola de samba, o homem negro é o morador do subúrbio ou o malandro ou o ladrão. Por que ainda não temos o protagonismo do negro nos palcos, nas telas, na sociedade?

O blackface renova o preconceitos, essencializa estereótipos e é uma forma de exclusão, uma vez que opera ao negar espaços a atores negros. Blackface é opressão que longe de ser uma forma de humor, é uma forma racista que, se hoje é mais sutil, não é menos ofensivo. É mais um mecanismo de discriminação.

As linhas entre a arte e o racismo, o humor, a liberdade de expressão e o preconceito são, de fato, bastante tênues. Mas não se pode ignorar que essas performances do blackface desempenharam papel importante em consolidar e proliferar imagens, atitudes e percepções racistas no mundo e não deveriam encontrar adeptos hoje em dia.

Uma ferramenta que ridiculariza o negro por meio de uma caricatura exagerada e não permite que negros possam representar a si mesmos não deveria ser aplaudida em pleno 2015. Enquanto prática racista, o blackface não pode ser naturalizado ou encarado como humor. Porque nenhuma forma de discriminação deve ser tolerada ou justificada pela arte, pois a arte serve para combatê-las e tem papel fundamental na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Cultura e racismo  (Foto: Cris Rocha)

Cena da montagem de A mulher do trem. A peça foi lançada em 2003 e iria reestrear (Foto: Cris Rocha)

*Rebeca Campos Ferreira, doutoranda em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e Perita em Antropologia, Ministério Público Federal – MPF / RO

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