Desigualdade salarial por gênero vitima mulheres e a própria economia

31 de agosto, 2015

(Jornal do Comércio, 31/08/2015) Os casarões que abrigam a Associação Cultural Vila Flores, em Porto Alegre, têm ganhado novas cores. Parte do espaço, no futuro, abrigará uma sala para a ONG Mulheres em Construção, entidade que, há 10 anos, oferece cursos de construção civil. Para quem ainda acha que mulheres não podem trabalhar em obras, as trabalhadoras provam o contrário: são as responsáveis pela reforma do complexo arquitetônico, distribuído em um terreno de 1.415 m2?. “As mulheres, com certeza, estão vindo para a construção civil de uma forma bem forte”, afirma Bia Kern, presidente e fundadora da ONG. Nos canteiros do programa Minha Casa Minha Vida, por exemplo, a presença feminina aumentou em 250% nos últimos seis anos – de 1.258 em 2009 para 4.494 neste ano – no quadro total de funcionários da MRV, construtora responsável pelo projeto. No entanto, o mesmo não acontece com os salários.

As mulheres recebem cerca de 70% do rendimento médio dos homens, de acordo com a pesquisa Estatísticas de Gênero do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), divulgada no ano passado. A diferença cresce ainda mais conforme o perfil étnico: negras e pardas ganham apenas 35% da remuneração do público masculino. Por trás das estatísticas está o preconceito sofrido por quem ainda enfrenta um mercado de trabalho que remunera não por aptidões, mas por gênero. “Perguntam se nós cobramos menos, porque somos mulheres”, lamenta Bia.

As mulheres não são as únicas vítimas da segregação setorial e profissional. O crescimento  de países que perpetuam essa condição também fica comprometido, revela o relatório Tendências Mundiais de Emprego das Mulheres, realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2012. Segundo o estudo, eliminar as desigualdades de gênero em matéria de desemprego, emprego, participação na força de trabalho e vulnerabilidade profissional significa também melhorar os indicadores econômicos. “Nos países em desenvolvimento, isso pode contribuir de maneira considerável com a redução da pobreza”, garante José Manuel Salazar-Xirinachs, diretor regional para América Latina e Caribe da OIT. O relatório sugere a adoção de medidas em matéria de proteção social destinadas a reduzir a vulnerabilidade das mulheres, os investimentos em capacitação e educação e a instaurar políticas que favoreçam o acesso ao emprego.

O Brasil ainda tem muito o que avançar nesse quesito. O País está entre os primeiros no ranking das maiores disparidades salariais da América Latina, revela o estudo Novo século, velhas desigualdades: diferenças salariais de gênero e etnia na América Latina, escrito pelos economistas Hugo Ñopo, Juan Pablo Atal e Natalia Winder, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), realizado com 18 países. Levando-se em conta o critério de comparação utilizado pela pesquisa, de características demográficas e de emprego semelhantes, os brasileiros ganham aproximadamente 30% a mais do que as mulheres de mesma idade e nível de instrução no País, o que representa quase o dobro da média da região, que é de 17,2%.

Soluções para mudança de estereótipos começam dentro de casa

A implementação de um maior número de creches públicas permitiria às mulheres se dedicarem à vida profissional de forma mais efetiva. É o que aponta o estudo do Banco Internamericano de Desenvolvimento (BID). Bia Kern, presidente e fundadora da ONG Mulheres em Construção, reforça que a maternidade acaba sendo um empecilho e diz que muitas empresas optam por homens por entenderem que a responsabilidade com os filhos é somente feminina. “Além disso, acabam pagando menos, pressupondo que a mulher vai desistir lá na frente para engravidar”, lamenta. Essa realidade ainda leva muitas mulheres a abrirem mão da vida privada, e até mesmo da maternidade, em prol da carreira.

Por isso, a ONG Mulheres em Construção trabalha para empoderar as mulheres e desenvolver a igualdade de gêneros em todos os ambientes, uma vez que atende não só quem busca uma nova profissão, mas também aquelas que simplesmente querem conquistar autonomia para fazer os reparos em suas residências. Essa, aliás, é outra recomendação do BID: a mudança de estereótipos para alcançar a igualdade no mercado de trabalho deve começar dentro de casa, com a distribuição de tarefas de forma igualitária.

Apesar da entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho a partir dos anos 1960, em pleno século XXI, elas ainda são encaradas como as responsáveis pelas atribuições domésticas, o que as deixa em desvantagem e, muitas vezes, preteridas no momento da contratação. “É preciso romper essa construção histórica, fixada no imaginário, de que a figura capaz de liderar e de tomar decisões é masculina e branca, para poder eliminar as diferenças salariais”, defende Cida Bento, diretora executiva do Centro de Estudos em Relações Trabalhistas (Ceert) e doutora em Psicologia pela USP.

A educação foi uma das formas encontradas pelo público feminino para superar as desvantagens. De acordo com um estudo realizado pelo IBGE em 2009, a média de anos de estudo da população ocupada brasileira é de 8,7 anos para as mulheres contra 7,7 anos para os homens. Elas também são maioria na conclusão do Ensino Superior: 9,2% conquistam o diploma universitário, contra 7,8% dos homens. “No entanto, por motivos que vão além das perspectivas educacionais, esse preparo não se reflete no mercado”, alerta Lúcia dos Santos Garcia, pesquisadora do Dieese.

Uma alternativa para ampliar o número de mulheres líderes e que vem ganhando força é a política de cotas. A reserva exclusiva de vagas pode acelerar o processo e diminuir a lacuna entre os gêneros e é adotada em países como a Noruega.

No ano passado, o Grupo Mulheres do Brasil, liderado por Luiza Helena Trajano, presidente do Magazine Luiza, levou ao Congresso um projeto de lei que pretende instituir a política por aqui. A procuradora do MPT de Porto Alegre Marcia Medeiros de Farias também é favorável ao sistema: “Elas (as cotas) possibilitarão que se trabalhe com a redução da discriminação – algo que foi construído historicamente e que deve ser desconstruído”, argumenta.

Discriminação está entre as principais causas da disparidade

O salário não é o único fator segregacional entre os gêneros no mercado. De acordo com a procuradora do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul Márcia Medeiros de Farias, a discriminação pode ter início antes de uma mulher conseguir um emprego, com a publicação de anúncios que exigem que o candidato seja homem. Mesmo após conquistar uma vaga, elas são as que mais sofrem com a ameaça da demissão. “Ainda existe uma ideia muito forte de que o homem sustenta a casa, enquanto a mulher precisa menos do trabalho”, acredita a procuradora.

A Pesquisa de Emprego e Desemprego elaborada pelo Dieese comprova essa distorção. Em 2010, a taxa de desemprego entre os homens era de 11,5% em São Paulo e 8,7% em Porto Alegre, percentuais que chegavam a 14,7% para as paulistanas e 10,6% para as porto-alegrenses. O tempo médio de procura por trabalho também é maior para elas. Nas mesmas capitais, o tempo gasto no mesmo período em busca de uma nova atividade era de sete e seis meses para os homens, contra oito e sete para as mulheres.

A procuradora adverte ainda que é fundamental que haja uma distinção entre os diferentes tipos de discriminação: “Mulheres negras, pobres, com alguma deficiência, homossexuais, bissexuais e transexuais certamente sofrem mais com toda essa situação do que uma mulher branca e não pobre”, afirma. Para Lúcia dos Santos Garcia, pesquisadora do Dieese, a realidade das mulheres negras é a mais difícil de todas, herança simbólica dos tempos de escravidão que segue limitando o acesso de negros à educação e ao mercado de trabalho. “Se para as mulheres existe uma designação de lugar, para as mulheres negras também existe, e geralmente é no emprego doméstico ou nos serviços gerais.”

Segundo dados do MPT-RS, quatro entre 10 negras não têm emprego no País, e apenas 0,3% dos cargos de gerência são ocupados por elas. “As mulheres estão em grande número nas faculdades, no mercado de trabalho, mas, quando se trata de ocupar posições mais elevadas, isso se inverte. Quantas reitoras e CEOs a gente conhece? São tão poucas que se pode contar nos dedos de uma mão”, argumenta Ana Tércia Rodrigues, contadora, professora do curso de Ciências Contábeis da Ufrgs e vice-presidente do Conselho Regional de Contabilidade do Rio Grande do Sul (CRCRS).

“As pessoas costumam dizer: mas você é negra e conseguiu se projetar. Eu respondo: sou a exceção, não a regra”, sentencia. Segundo Ana Tércia, ainda é comum ouvir manifestações de contrariedade ao tema, alegando que está muito batido, e que as mulheres e os negros não precisam mais de nenhum tipo de estímulo ou incentivo. No entanto, ela é taxativa ao alegar que nada está solucionado e que o mercado é tão competitivo quanto preconceituoso.

A escolha profissional, muitas vezes, também é consequência da segregação por gênero. Lúcia lembra que as mulheres são maioria nos cursos de educação, saúde e bem-estar social, o que revela a repetição – consciente ou não – das aptidões que lhes foram designadas, de cuidar e educar. “Mesmo dentro dessas áreas, elas estão nos segmentos de menor status, atuando nas séries iniciais do Ensino Fundamental, enquanto os homens são maioria entre os professores universitários”, afirma a pesquisadora. O mesmo ocorre na área da saúde: nos hospitais, elas estão em maior número na enfermagem, enquanto eles predominam entre os cirurgiões.

A escolha por essas profissões também acaba refletindo nos salários. A pesquisa Estatísticas de Gênero do IBGE aponta que as áreas de formação nas quais as mulheres de 25 anos de idade ou mais estão em maior proporção educação (83,0%) e humanidades e artes (74,2%) ? são justamente as que registram os menores rendimentos médios mensais entre as pessoas ocupadas (R$ 1.810,50 e R$ 2.223,90, respectivamente).

Mais suscetíveis a sofrer assédio moral e sexual, trabalhadoras devem denunciar os abusos sofridos 

Os assédios moral e sexual também são mais recorrentes entre as mulheres. Enquanto o primeiro é um processo originado de atitudes continuadas que visam a desestabilizar a vítima, o segundo pode ser caracterizado só por uma ação e, quando vindo de um superior, é considerado crime. “Ainda prevalece a cultura de que ‘cantada’ pode, mas, a partir do momento em que a mulher diz não e a pessoa insiste, está caracterizado o assédio”, orienta a procuradora do MPT-RS Márcia Medeiros de Farias.

A maternidade é outro fator que gera situações constrangedoras e abusivas. Muitas mulheres em idade de engravidar são corriqueiramente eliminadas de disputas por uma vaga. No Brasil, como as mães são encaradas como as responsáveis pelos filhos, a legislação prevê licença-maternidade de, no mínino, 120 dias, podendo ser ampliada para até 180 dias. Já a licença-paternidade é de apenas cinco dias.

A Resolução nº 156, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), determina igualdade de oportunidades e tratamento para trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidades familiares. “Não é que não existam homens dispostos a cuidar da família, mas, se a maioria assumir esse compromisso, os empregadores não terão por que segregar”, aponta Lúcia Garcia, pesquisadora do Dieese.

No que diz respeito ao assédio e ao cumprimento da Lei da Licença-maternidade, Márcia destaca que o mais importante é que as mulheres conheçam seus direitos e, quando vítimas, procurem o MTP para denunciar, mesmo que já tenham se desligado da vaga.

Outra alternativa de denúncia são os sindicatos. A CUT-RS, por exemplo, tem a Secretaria das Mulheres, representada por Isis Garcia Marques, dirigente bancária. No entanto, a resistência em aceitar uma pauta específica das mulheres começa, muitas vezes, dentro das próprias organizações trabalhistas. “A maior parte da militância é composta por mulheres, mas ainda lutamos pela paridade dentro dos espaços de gestão. Então, o que se busca é o empoderamento feminino, para que elas consigam fazer seus direitos valerem”, defende.

Organizações buscam formas de compensar as discrepâncias

A igualdade de gênero vem ganhando espaço em debates propostos por organizações de todo o mundo. No Brasil, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) da Presidência da República criou, há 10 dez anos, o programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, que identifica e premia instituições que desenvolvam políticas igualitárias. Até o momento, mais de 80 empresas já aderiram – no geral bancos e instituições públicas -, o que, segundo a SPM, atinge aproximadamente um milhão de trabalhadoras e trabalhadores.

Além disso, 63 empresas com sede no Brasil são signatárias dos WEPs – Women’s Empowerment Principles (Princípios de Empoderamento das Mulheres), iniciativa conjunta da ONU Mulheres e do Pacto Global da ONU que tem por objetivo impulsionar e fortalecer lideranças femininas na cadeia produtiva das empresas. No mundo, mais de 900 corporações já aderiram aos princípios que, entre outras coisas, estimulam o apoio a empreendedoras, a promoção de políticas de empoderamento e da igualdade de gênero dentro das empresas e também junto à sociedade, bem como a documentação e a divulgação dos progressos da instituição.

O Walmart é um das assinantes dos WEPs, além de já ter recebido o selo pró-equidade de gênero, da SPM. No quadro total de funcionários da empresa, elas são maioria (54,97%), porém ainda estão em minoria (40,42%) nos cargos de liderança. Andreia Fernandes Nunes, diretora de Capital Humano da companhia, destaca o trabalho para ampliar este número. “Temos programas especiais de desenvolvimento para mulheres que almejam a liderança. Uma vez por ano, por exemplo, identificamos quem são as pessoas com alto potencial e desenvolvemos um plano individual de crescimento com cada uma.”

Como enfrentar o problema

  • Melhorar a infraestrutura com o objetivo de reduzir a carga do trabalho em casa. Segundo o nível de desenvolvimento, isto pode variar desde a disponibilidade de eletricidade e água, ao saneamento e aos meios de transporte.
  • Fornecer serviços de cuidado, sobretudo às crianças.
  • Equilibrar a divisão de trabalho remunerado ou não remunerado entre mulheres e homens, principalmente através de programas que promovam a repartição das responsabilidades familiares.
  • Modificar os custos e os benefícios da especialização de gênero, sobretudo garantindo que os impostos e as transferências não criem desincentivos para as famílias com duas fontes de renda.
  • Compensar as desigualdades das oportunidades de emprego entre homens e mulheres, sobretudo através de medidas dirigidas a eliminar o impacto negativo da interrupção da atividade profissional através de uma licença maternidade remunerada e do direito a regressar ao posto de trabalho.
  • Realizar campanhas de sensibilização para mudar os estereótipos de gênero e para garantir a implementação da legislação contra a discriminação.

Luana Casagranda

Acesse no site de origem: Desigualdade salarial por gênero vitima mulheres e a própria economia (Jornal do Comércio, 31/08/2015)

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