Breve história do ódio: linchamentos, rolêzinhos e a reação racista à mobilidade social, por Luiz Eduardo Soares

16 de outubro, 2015

(Geledés, 16/10/2015) Os dia 31 de janeiro de 2014, cerca de 30 rapazes em 15 motos cercaram quatro adolescentes na avenida Rui Barbosa, no bairro carioca do Flamengo, aparentemente sob pretexto de que pareciam suspeitos. Dois meninos abordados conseguiram fugir.

Os outros dois viram uma pistola 9mm com um dos motoqueiros e não correram. Foram espancados. Um deles fugiu. Seu parceiro de infortúnio, um adolescente negro, foi amarrado pelo pescoço a um poste, onde o deixaram nu, sangrando como uma presa abatida.

Os justiceiros foram embora. Logo surgiram mais notícias sobre a gangue de motoqueiros. Outros jovens pobres foram surrados e deixados nus, sob ameaça de linchamento. Enquanto batiam em suas vítimas, os motoqueiros as acusavam de terem cometido roubos e outros delitos.

Os sinais parecem claros, mesmo que não fossem conscientes. Por que amarrar pelo pescoço a um poste? Por que deixar a vítima nua? Havia mensagens nessas escolhas. E elas só poderiam ser compreendidas no contexto marcado pelos rolezinhos e pela disseminação do ódio.

Os quase linchamentos não foram casos isolados. Todo ano há linchamentos no Brasil. A novidade estava no cruzamento entre o espaço e o tempo em que ocorreram esses episódios: na zona sul do Rio de Janeiro, área afluente da cidade, no auge da febre dos rolezinhos.

Todo ano há linchamentos no Brasil. A novidade estava no cruzamento entre o espaço e o tempo em que ocorreram esses episódios: na zona sul do Rio de Janeiro, área afluente da cidade, no auge da febre dos rolezinhos.

Encontros de jovens da periferia de São Paulo em postos de gasolina, de madrugada, nos fins de semana, ou em estacionamentos de supermercados, já ocorriam havia algum tempo.

Eram os “gritos por lazer”, como diziam os participantes, ávidos por divertimento tão escasso em zonas áridas, desprovidas de programas acessíveis e atraentes. Mas em 8 de dezembro a turma inovou: cerca de seis mil jovens reuniram-se no shopping Metrô Itaquera.

Segundo membros ativos do grupo, foram dar um rolezinho naquele espaço de lazer e consumo da classe média. Houve tumulto, o shopping fechou uma hora e meia mais cedo, clientes e lojistas temeram violência, alguns relataram furtos, mas a administração negou que tivesse havido delitos, muito menos o alegado arrastão.

O medo atrapalhou o passeio das famílias e a rotina do estabelecimento, mas nada relevante foi reportado à autoridade policial. A situação era esdrúxula, porque, a rigor, não havia nada de errado e, portanto, nada a fazer para impedir que jovens pobres ocupassem espaços na cidade que também lhes pertenciam, ainda que não costumassem frequentá-los. Em certo sentido, sem que houvesse uma norma explícita que vetasse sua presença, aquela nova experiência trazia à tona barreiras imaginárias.

A visita inesperada causava incômodo. Os dois lados percebiam a sutileza do que estava acontecendo. Sim, os eventos eram grandiosos, faziam muito barulho, mas o gesto que mudava as peças no tabuleiro era sutil e tocava cordas delicadas da sensibilidade nacional.

Os meninos e as meninas compreenderam que as ocupações tornar-se-iam atos políticos: era como se reafirmassem seus direitos sobre os espaços públicos, dos quais os pobres e negros sempre estiveram excluídos no Brasil.

Foi assim que os rolezinhos se tornaram uma brincadeira bastante séria e tocaram o nervo de um dos maiores tabus brasileiros: o racismo, recalcado sob a ideologia da democracia racial. A tolerância existe desde que uns fiquem de um lado e outros, de outro, apartados, geograficamente, nos shoppings, nos ambientes usualmente frequentados por uns e por outros.

As desigualdades sociais e econômicas garantiam essa distância, isolando, canalizando ou sublimando tensionamentos. Entretanto, nos últimos vinte anos, as desigualdades foram significativamente reduzidas – apesar de serem ainda abissais. Esse processo conferiu credibilidade ao discurso sobre equidade e cidadania, consagrado na Constituição federal, que antes era ignorado ou repelido pela massa da população como se fora a mais sórdida e demagógica das mentiras.

A avalanche de mudanças substantivas das duas últimas décadas levou a maioria a sentir-se valorizada e fortalecida, fazendo-a adotar a linguagem dos direitos, seja como consumidor, seja como cidadão.

Crimes racistas começaram a ser denunciados e tratados com seriedade. Pela primeira vez na história do país, numerosos contingentes de jovens negros chegaram à universidade e eles não estavam mais dispostos a levar desaforo para casa. Referências à elite branca, antes uma caricatura exótica, passaram a marcar as conversas dos segmentos politicamente mobilizados da sociedade.

O primeiro rolezinho foi um sucesso midiático e garantiu o êxito da convocação para o seguinte, que reuniu duas mil e quinhentas pessoas no Shopping Internacional de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, no dia 14 de dezembro de 2013. A sequência de atos pode ser vista como o rompimento performático de muros simbólicos que apartavam pobres e ricos, promovendo mudanças na geopolítica convencional, elitista e racista.

Animados com o entusiasmo com que eram acatadas as convocações pelas redes sociais, assim como pela intensidade das reações que as incursões suscitavam, os jovens não recuaram. Os rolezinhos eram pacíficos e lúdicos, mas assustavam.

Divertiam-se com o medo que provocavam, mais ou menos como as crianças que saem mascaradas no haloween norteamericano. A diferença é que, no Brasil, as máscaras que assombravam eram os rostos nus dos jovens sobre os quais recaíam velhos mas impronunciáveis estigmas. E é claro que isso não é nem um pouco engraçado, ainda que a garotada gargalhasse nos tumultos que provocava.

Claro que um fator distintivo nesse caso é o número. Isolados, seriam ignorados ou, dependendo do comportamento e do vestuário, convidados a se retirar, como ocorreu algumas vezes no passado, embora cada vez menos, em função do crescimento da consciência sobre os direitos. Aos milhares, impunham-se e, por assim dizer, invertiam a correlação de forças. No dia 22 de dezembro, o rolezinho aconteceu no Shopping Interlagos, na zona sul de São Paulo. Quatro participantes foram detidos. Muitos policiais foram mobilizados. Não houve registro de furtos ou danos ao patrimônio.

O rolezinho seguinte ocorreu na Zona Norte da cidade de São Paulo, no Shopping Tucuruvi, em 4 de janeiro de 2014. Não houve furtos nem prisões, mas correrias e confusões forçaram a administração a interromper o expediente três horas antes do previsto. A continuação dos rolezinhos precipitou declarações duras por parte das associações de lojistas e o governo estadual foi instado a reprimir com severidade aquelas brincadeiras.

Elas estavam perturbando os consumidores, afastando-os dos shoppings e custando caro ao comércio. No dia 11 de janeiro, a polícia militar não hesitou em recorrer a balas de borracha e gás lacrimogêneo para dispersar a aglomeração dos jovens no Shopping Metrô Itaquera, que fora palco do primeiro episódio da série. Um jovem acabou sendo detido.

Dois roubos e dois furtos foram registrados. Naquele mesmo dia haviam sido marcados rolezinhos em outros shoppings paulistas. Os estabelecimentos interpelaram a Justiça, requerendo a proibição dos eventos. Difícil era definir as regras do jogo. Como filtrar os admissíveis? Pela idade? Cor e vestimenta seriam indicadores inconstitucionais. Pelo número? Só funcionaria se os milhares chegassem todos de uma vez.

Como distinguir entre consumidores e visitantes dispostos a participar da performance, a qual, aliás, resumia-se a estar nos espaços escolhidos em grande número, eventualmente cantando as canções mais apreciadas? Curiosamente, partícipes do rolezinho eram também consumidores. Não havia depredações, crimes, violência.

Por que e com base em quais critérios proibir a entrada? O governo de São Paulo via-se mais uma vez metido numa grande encrenca. Afinal, tratava-se de um ano eleitoral. Não havia como evitar desgastes. Haveria cenas de correria: tanto com o triunfo do rolezinho, quanto com a demonstração de força por parte da polícia militar.

A pergunta que o governador se fazia era, provavelmente, como perder menos. Nesse contexto, era natural que ele tentasse empurrar o problema para o prefeito, Fernando Haddad, do PT. O prefeito não se fez de rogado e deu exemplo de inteligência e sensibilidade social: reconheceu a necessidade de discutir a cidade em seu conjunto e de investir na abertura de novos espaços públicos para o lazer e a cultura [1].

O primeiro rolezinho do Rio de Janeiro só seria convocado para o dia 19 de fevereiro de 2014. Mesmo assim, no Rio, sabia-se tudo sobre os rolezinhos e falava-se bastante a respeito, uma vez que jornais, revistas, rádios e TVs cobriram em detalhes o que acontecia em São Paulo. Outros estados começavam a assistir a eventos semelhantes.

O exemplo paulista era contagioso. A moda não demoraria a chegar ao Rio, onde, aliás, ocorrera a primeira manifestação no interior de um shopping: em 2001, o líder comunitário André Fernandes levou um grupo de jovens favelados para o Rio Sul com o propósito de denunciar as desigualdades, a pobreza e a violência policial. Mas o contexto era outro e a performance esgotou-se em um único ato. Em 2014, as condições estavam dadas para que a experiência se alastrasse.

Portanto, quando o adolescente negro foi espancado e abandonado nu, amarrado pelo pescoço a um poste, os rolezinhos estavam presentes no repertório cotidiano da mídia e do imaginário social. Eram muito fortes as imagens de jovens negros deslocando-se como populações errantes em ondas migratórias para dentro dos templos do consumo da classe média, os shoppings centers, atravessando limites que antes talvez fossem considerados intransponíveis.

Não que antes os jovens pobres e negros fossem proibidos de entrar e passear nos shoppings. Como os preços e o ambiente não lhes eram, digamos, familiares, sua presença não era significativa. Entrando em grande número, punham uma lente de aumento sobre sua presença, tornando-a um fato público notório. A geopolítica do surdo apartheid nacional estava sendo desestabilizada.

Paredes haviam sido postas abaixo por efeito da redução das desigualdades e do novo protagonismo assumido pela juventude das periferias. Esta mobilidade assombrava muita gente. Quando os trinta motoqueiros atacaram os adolescentes no Rio de Janeiro, este era o quadro de fundo, mesmo que nada disso fosse verbalizado.

Os justiceiros cariocas amarraram o menino no poste para dramatizar sua fixação territorial, criando um contraponto às ondas migratórias, ao nomadismo que desconhece fronteiras de classe e de cor, à errância que ignora a geografia social estabelecida pela tradicional distribuição de poder. Enlaçaram-no pelo pescoço para privá-lo de voz, e sabemos que a voz é o meio mais importante de afirmação da natureza humana.

Voz articula a linguagem e a linguagem constitui o sujeito, dota-o de subjetividade, dignidade e direitos. A nudez corresponde à privação dos signos mais elementares de pertencimento à sociedade, as roupas. O jovem negro foi reduzido ao corpo sem voz, desprovido de movimentos e linguagem – subjetividade, dignidade, direitos e inserção social.

A agressão ao adolescente foi uma resposta brutal aos rolezinhos, paradoxalmente demonstrando seu profundo sentido histórico. As sociedades mudam como animais trocam de pele. No Brasil, a velha epiderme não cederia sem resistência.

Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública e coordena curso sobre segurança pública na Universidade Estácio de Sá. Seu livro mais recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das Letras, 2015).

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