Indianas quebram silêncio e passam a denunciar estupros

20 de outubro, 2015

(The New York Times/UOL Notícias, 20/10/2015) Desde que se tem lembrança, os homens de casta superior em uma aldeia aqui no norte da Índia cercavam as meninas. Os estupros continuavam porque não havia risco algum: as meninas ficavam destruídas, mas os homens não enfrentavam qualquer consequência.

Agora, isso pode estar mudando, em parte por causa da coragem e da luta de uma adolescente. A lei indiana não permite nomear as vítimas de estupro, então ela disse para que a chamássemos de Bitiya –e ela é o pesadelo de um estuprador. Esta não é mais uma tragédia de vitimização sexual, e sim um retrato de uma adolescente indomável cuja vontade de enfrentar o sistema nos inspira e ajuda a proteger as outras garotas locais.

Estou em minha viagem anual premiada, quando levo um estudante universitário ao longo de uma viagem de trabalho para o mundo em desenvolvimento. Eu e o vencedor, Austin Meyer, da Universidade de Stanford (EUA), vimos em Bitiya uma lição para o mundo sobre a importância de acabar com a impunidade que muitas vezes envolve a violência sexual, inclusive nos Estados Unidos.

Bitiya, que é de uma casta inferior, não sabe direito sua idade, mas acha que tinha 13 anos em 2012 quando quatro homens da casta superior da aldeia a agarraram enquanto ela trabalhava em um campo, rasgaram suas roupas e violaram-na. Eles filmaram o ataque e a advertiram que, se ela contasse para alguém, eles iam liberar o vídeo e também matar seu irmão.

Então, Bitiya inicialmente manteve o silêncio.

Seis semanas depois, o pai de Bitiya viu um garoto de 15 anos de idade assistindo a um vídeo pornográfico e ficou horrorizado ao reconhecer a filha. Os homens estavam vendendo o vídeo em uma loja local por US$ 1 (em torno de R$ 4) por cópia.

Como Bitiya está chorando no vídeo e é dominada pelos homens, sua família aceitou que ela era inocente. Seu pai foi à polícia para apresentar queixa.

A polícia não ficou interessada no caso, mas os anciãos da aldeia sim. Eles decidiram que Bitiya, uma excelente aluna, deveria ser impedida de frequentar a escola pública local.

“Eles disseram que eu era o tipo errado de garota, que afetaria as outras meninas”, disse Bitiya. “Eu me senti muito mal com isso.”

Eventualmente, a pressão pública forçou a escola a aceitá-la de volta, mas os anciãos da aldeia continuaram a impedir que a família recebesse as cestas de alimentos do governo, aparentemente como forma de punição por terem exposto o caso.

Na base de tudo estão as castas. Bitiya é uma dalit, uma casta que já foi considerada intocável, na base da hierarquia.

O escrutínio da sociedade civil levou tardiamente à detenção de quatro homens, que então foram liberados sob fiança. O caso se arrasta desde então, e o pai de Bitiya morreu de um ataque cardíaco depois de uma audiência particularmente brutal. A família também teme que os membros de castas superiores matem o irmão de 16 anos de idade de Bitiya, então ele fica em casa na maior parte do tempo –o que significa que não está trabalhando, deixando a família em dificuldades para comprar comida.

Os suspeitos do estupro ofereceram um acordo de US$ 15 mil se a família de Bitiya retirasse a queixa. Eles levaram o dinheiro vivo até a casa dela, de chão de terra batida. Bitiya nunca tinha visto tanto dinheiro, mas diz que não aceitaria nem o dobro.

“Eu quero vê-los na cadeia”, diz Bitiya. “Então, todo mundo que estiver assistindo vai saber que as pessoas podem ser punidas por isso.”

“Nunca me senti tentado”, acrescentou seu avô.

Bitiya diz que não se sente desonrada, pois a desonra encontra-se em estuprar, e não em ser estuprada. Ela está convicta de que a exposição dela e de sua família está tendo um impacto. Os suspeitos de estupro tiveram que vender suas terras para pagar a fiança, e todo mundo na área agora entende que estuprar meninas pode realmente trazer consequências. Antes de Bitiya, havia muitos estupros na aldeia, mas desde então parece que não houve nenhum.

Madhavi Kuckreja, ativista de longa data que está ajudando Bitiya, diz que o caso reflete certo progresso contra a violência sexual.

“Tem havido uma quebra do silêncio”, disse Kuckreja. “As pessoas estão falando e prestando queixa.”

Kuckreja observa que o custo da violência sexual é um medo paralisante que afeta todas as mulheres e meninas. Os pais, temerosos, “protegem” as filhas da violência sexual de tal forma que ficam impedidas de estudar, de utilizar a internet ou o celular, ou de conseguir um bom emprego, e isso também vale para os meninos. Para cada garota que é estuprada, Kuckreja diz, muitos milhares perdem oportunidades e mobilidade por causa do medo de tal violência.

A situação atrasa o desenvolvimento das mulheres, assim como de toda a Índia. O Fundo Monetário Internacional diz que a economia da Índia está atrofiada pela falta de mulheres na economia formal.

Em uma aldeia, perguntei a um grande grupo de homens sobre a questão do estupro. Eles insistiram que honram as mulheres e deploram a violação –e, em seguida, acrescentaram que a melhor solução após um estupro é a menina se casar com o estuprador, para acabar com os sentimentos negativos.

“Se ele a estuprou, provavelmente gosta dela”, explicou Shiv Govind, de 18 anos.

Estou torcendo para que Bitiya e garotas fortes como ela mudem essas atitudes e acabem com a impunidade que oprime as mulheres e empobrece as nações.

Nicholas Kristof
Em Lucknow (Índia)
Tradutor: Deborah Weinberg

Acesse no site de origem: O pesadelo de um estuprador na Índia (The New York Times/UOL Notícias, 20/10/2015)

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